“Não. Era você!”. Na sala há uma surpresa generalizada. Rosaria, uma italiana que mora na Grécia, acabava de contar o encontro com uma amiga que lhe confessou todas as suas aflições abrindo o coração como nunca na vida fizera: “Ela falava, dizia-me: quem é você, porque me trata assim? Mas era Cristo que agia, não eu...”. E Julián Carrón interrompe-a entusiasticamente, com um sorriso nos lábios, com um “não” que não deixa lugar a dúvidas: “Era você, Rosaria. Temos que nos dar conta. Se não estamos deixando de lado o que Cristo faz: gerar sujeitos assim. Uma pessoa encontra vocês e percebe que pode abrir o coração. Era você. Esse 'você' é feito por Outro, mas é você. É preciso tomar consciência disso”.
Sujeito. Pessoa. Eu. Dar-se conta. São as palavras que mais se repetem, nestes quase dois dias de encontro entre os responsáveis do Movimento na Europa. Pouco mais de quarenta pessoas, num lugar de uma beleza rara (a península de Troia, a quarenta e cinco minutos de Lisboa, ferry boat incluído) e um diálogo em roda livre, intenso, sem parar nem durante as refeições. Como acontece entre os amigos.
Encontramo-nos assim todos os anos, faz algum tempo. Vem gente da Grã-Bretanha e da Albânia, da Bélgica e da Polônia, da Alemanha, de Malta e de toda a Europa Ocidental. Vai mudando o cenário (em 2014 foi a Espanha, um ano antes a França e o castelo de Claudel), não a finalidade. “A coisa mais importante é que cada um esteja aqui por si próprio, não pela gestão da própria comunidade de CL” recorda Carrón, introduzindo: “A comunidade só a construímos pela superabundância que vivermos em nós”. É a mesma superabundância que há ali. Em primeiro lugar, de acontecimentos. Sofia fala da exposição feita no Meeting de Lisboa. Nascera do desejo de aprofundar o texto sobre a Europa “e, sobretudo da questão que abriu em mim: por que os 'novos direitos' têm este fascínio sobre uns e a outros, como eu, causam aversão?”.
“Pois bem, acontece algo com uma pessoa; esta fica impressionada, é leal face à pergunta que nela nasce e que lhe abre a razão aos poucos”, observa Carrón: “Esse é o início. O resto – o trabalho, a exposição, aquilo que nasce – são consequências. Mas nós temos que nos dar conta da nascente”. Um encontro que desperta o eu: “Se não acontece, podemos fazer todos os documentos que quisermos, mas o conteúdo não passa”.
Da Espanha relata-se o percurso feito sobre as eleições; de outros pontos, encontros inesperados: o ex-padre que deixou o hábito e que, assistindo ao vídeo de Giussani, “reencontrou o caminho para Cristo”, o colega que desabafa e acaba falando da doença de que não falou a ninguém… “O que terão visto para se abrirem assim? Que certeza começaram a ter para poderem confiar?”, insiste Carrón: “Vejam, diante dos fatos que acontecem é necessário tomar consciência, senão ficamos parados no impacto sentimental, mas continuamos como antes: não se cresce. Pensávamos A, aconteceu B, e nós continuamos a pensar A, como se não tivesse acontecido nada. A questão fundamental do acontecimento não é o impacto, mas se entra algo de novo, algo que mexe com o conhecimento”. E o que favorece este dar-se conta? “Se não trabalhamos o instrumento do pensamento, essas coisas são sonhos. O verdadeiro trabalho é este: submeter continuamente a razão à experiência, àquilo que aconteceu”.
Prossegue-se à mesa, no bar, durante os passeios na praia. Ou nos intervalos das partidas de futebol. Carrón insiste na necessidade de não deter-se na beleza da companhia: “É evidente que um lugar como o Movimento é um oceano de humanidade, comparado com o deserto à nossa volta. Mas isso pode nos fazer ficar na superfície, dar-se por satisfeitos”. Fala-se da liberdade dos filhos e da diaconia, da autoridade (“é concedida por Deus: a nós cabe reconhecê-la”) e da corresponsabilidade (“que só acontece se concebemos o outro como um bem”). Até dos gestos, de cuidar a sua preparação. Com Carrón que parte da experiência, fala muito de si: da vez em que Dom Giussani lhe pediu que junto com outros relessem e corrigissem até o fim o texto de um testemunho que ia dar num encontro (“entendem o cuidado nos gestos, até ao mínimo detalhe?”), da utilidade que encontra no confronto com os amigos, da disponibilidade para mudar.
O tempo passa depressa. Até demais. Quando nos damos conta já era missa de Pentecostes, onde se rezou pelos cristãos perseguidos. É hora de pegar aferry boat de volta para Lisboa, de volta para casa. E ao trabalho de se dar conta.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón