Numa rapidez tão “misteriosa como misericordiosa”, como disse uma amiga, Carla Agria partiu deste nosso mundo, dócil, segura e forte sem vacilar um segundo sobre a bondade do que lhe estava acontecendo. O seu sofrer nunca foi colocado à tema e as despedidas, ou o gosto de marcar os sentimentos, nunca tiveram espaço. Confiou que Jesus faria tudo quando ela já não estivesse. Foi um tempo de festa.
Os escassos 26 dias que lhe foram dados desde que foi diagnosticada com um tumor, trouxeram à tona o fruto da sua vida, da sua fé. Mostraram a raiz da sua atração, a razão da sua proximidade, como bem descreveram, nas celebrações do velório, os seus amigos padres. Não lhe interessou saber se ia morrer, interessou-lhe aqueles que batiam à porta para ampará-la e ser amparados, e foram muitos. Aliás, levantou-se um clamor da terra, dos lugares por onde andou, quando souberam do seu câncer, porque ela era importante para muitas pessoas.
Desde que tinha dito um sim total a Jesus na vocação dos Memores Domini, vivia com a sua família, apoiando a mãe que dela precisava, porém, mantinha o desejo de que um dia a sua pertença fosse vivida numa casa. Foi por isso que, com surpresa e gratidão, viu cumprir-se este desejo desde que saiu do hospital, como o último abraço de Cristo, mantendo um apurado sentido da Presença invisível nas coisas visíveis, sobre os momentos, e a presença das amigas, em casa.
Assim, a Carla descreveu na semana em que morreria, o que estava sentindo: “Mesmo que todas as análises sejam péssimas e todos os resultados negativos, estranhamente, nunca me senti tão bem, tão contente e tão amada como nestes últimos tempos, e isto é um paradoxo estranho. Ao longo deste último período ficaram evidentes uma trama de relações que se construíram ao longo dos anos e onde vejo o amor de Jesus pela minha vida, sobretudo num Lugar que me gerou e me gera. Por isso eu tenho muito a agradecer e aquilo que me ocorre dizer é que eu não sou digna do que Tu fazes pra mim!”
O mesmo escrevia do hospital ao padre Carrón: “Desde que estou no hospital para fazer os exames dou-me conta da potência e fortaleza das palavras que me disseste ao longo dos anos. Cristo torna-se sempre mais presente e a presença dos amigos anula cada vez mais a incerteza. Por isso, quando canto e rezo o Regina Coeli sinto realmente uma alegria que não é humanamente explicável. Estou muito grata a Deus por ter me dado este carisma e ter me dado uma vocação que nunca teria imaginado. Peço muito a Dom Giussani com a certeza de que ele me ouve e me acolhe em cada necessidade que tenho”.
Nascida em Angola, foi para Portugal com 11 anos, fugida da guerra. Esta experiência deixou-lhe uma marca simples e forte na maneira de se relacionar com as dificuldades e na prontidão a acolher as alegrias da vida. Foi atrás de Cristo no meio dos vendavais das circunstâncias e agruras pelas quais passou. Bem se percebia que a Carla já tinha feito a guerra… Ao mesmo tempo, ficou-lhe um sentido de proteção para com a sua mãe, a mulher forte em condições difíceis que tiveram que enfrentar.
Levemente irônica, desconcertava a muitos porque debaixo de uma expressão séria e enigmática, soltava uma gargalhada e topava tudo o que se passava à sua volta. Estes últimos dias foram rodeados da estima da comunidade do Frei Luis de Sousa, colégio em Almada onde ensinava, há mais de duas décadas, filosofia, psicologia e religião.
Na fidelidade da sua amizade às gerações de alunos que passaram pelo colégio, na ligação com as pessoas da comunidade de CL de Aveiro e do Norte, na amizade com algumas cabeleireiras que nos últimos tempos deixavam tudo para atendê-la, nos grupos daqui e dali, a Carla foi deixando o sinal: a vida tem um objetivo.
Na doçura da sua partida está o seu último gesto de maternidade. A sua morte fala. Não esqueçamos o seu sacrifício. O maior testemunho é que a sua morte continue a criar vida. Ter encontrado ou ser como a Carla é ligar-se a Cristo e ninguém nos pode impedir essa amizade.
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