Primeira etapa de uma série sobre as comunidades de CL na África, visitada recentemente pelo Papa Francisco. A experiência do Movimento em um dos países mais jovens do mundo. No qual, entre a favela e as escolas, um povo se desperta
Em Uganda, que esteve entre as etapas da última viagem do Papa Francisco, de 25 a 30 de novembro, nasce uma média de seis filhos por mulher e divide com a Nigéria o título de país mais jovem do mundo: 78% da população tem menos de 30 anos e a idade média é de 15,5. Mas não basta nascer para viver, diz Michelle. Mora perto da favela de lama e barracos de Kireka, bairro da capital. Vinte e dois anos, traços finos, está sentada orgulhosa em sua escrivaninha no andar térreo da Luigi Giussani Primary School, onde trabalha como secretária. “Aqui é onde quero estar: rindo ou chorando, quero ficar aqui”. Aqui é o caminho do Movimento. E estas são as anotações de três dias vividos na comunidade de CL de Kampala, um pequeno povo que acontece como água que ferve na panela, onde um, e outro, e outro ainda, se desperta e desperta a quem está próximo.
Numa manhã, Michelle estava sentada onde está agora, amargurada e entediada, pensando não ser capaz de viver de verdade. Uma professora entra na secretaria: automaticamente, ela pega as chaves da sala de aula e lhe estende, porque essa é a rotina diária. “Não, não quero as chaves”. “Ah, e o que a senhora quer?”. “Quero ser como você. Leve-me com você”. Está falando “daquele encontro” ao qual a vê ir todas as semanas, a Escola de Comunidade. Naquele momento, Michelle entende: “Jesus estava me escolhendo sem se importar com meu tédio e minha miséria”. Como no seu primeiro encontro com CL: “Foi a maior surpresa da minha vida: alguém descrevia o meu coração para que eu pudesse ser feliz. Desde aquele momento, vivo: uma outra vida entrou na minha vida”.
Rose tem razão quando, ao ouvir falar de Michelle e dos outros jovens que começaram a experiência do Movimento, se pergunta quem coloca dentro deles certas coisas. “Ouço-os e sei que Cristo existe”. Rose
Busingye é a mãe de todos aqui, crianças e adultos, porque vive como filha: “Sigo o Mistério de Deus que acontece”. Memor Domini, 47 anos, enfermeira, em 1992 criou o Meeting Point International, dedicado às mulheres doentes de Aids, às crianças e aos jovens órfãos e pobres.
A origem está na semente plantada em Kitgum, no norte do país, a partir do encontro entre alguns médicos de CL e o padre comboniano Pietro Tiboni, no início da década de 1970. Quando Rose conheceu padre Tiboni, perguntou a ele: “Se Deus se fez carne, tem a ver também com a minha carne?”. Pareceu-lhe a coisa mais assombrosa do mundo. Hoje, depois de tantos anos, vive do mesmo estupor. “Quero participar do despertar das mulheres do Meeting Point e destes jovens: eles descobriram que têm um valor, que esse valor tem um nome, Jesus, e que Ele os olha sempre. Eu também quero viver sob esse olhar”.
Não há esquemas nesta comunidade, não por desordem ou anticonformismo, mas porque é uma vida e é unida: desde a gratidão das mulheres, que dançam sobre seu passado de dor, até o frescor de seus filhos, para os quais nasceram as escolas Dom Giussani (de Ensino Elementar e Ensino Médio). Aqui é evidente que o Movimento é apenas uma coisa: Cristo que nos abraça. E o abraço é um círculo: dos filhos volta às mães que vão atrás desses jovens que se enamoram pela vida e por Jesus, que estudam, se apaixonam, leem Traces para elas (a edição inglesa de Passos), pois muitas são analfabetas, participam do Movimento e transmitem tudo o que aprendem.
Françoise, mãe de Michelle, fazia parte de uma seita. Seguiu o que estava acontecendo à filha e hoje é “a última que nasceu do Meeting Point International”. Tinha graves problemas de saúde e não saía de casa, agora elegante e tímida deixa-se levar pelo ritmo dos tambores e dos guizos no tornozelo. “Também comecei a jogar futebol”, ri: “Porque conheci a bondade e a beleza de Deus”.
Os xelins e o extintor. Aqui não há etiquetas. Ninguém estabeleceu: “Agora vamos fazer caritativa”. Mas as mulheres já a fazem. Acolhem em suas casas (e as casas são barracos) as crianças enviadas pela polícia quando não há lugar na Wellcoming House de Rose, onde vivem menores abandonados e soropositivos. Já têm tantos filhos e problemas, mas “se há lugar para 5, há lugar para 6!”, dizem. E riem, e quando riem acabam cantando, e cantar e dançar é uma coisa só. Um dia, chegou uma senhora com a mente transtornada por ter inalado gasolina. “Estava preocupada”, conta Rose, “mas elas já tinham lhe preparado um lugar e, desde aquele dia, cuidam dela”. É a caritativa na sua origem, a gratidão torna-se gratuidade.
“Cada dia sou superado de todos os lados”. Alberto Repossi está em Kampala há um ano e trabalha para a Fundação AVSI no Meeting Point International. Antes de vir aqui, já tinha definido as “mulheres de Rose”: “São doentes, mas felizes, vivem o carisma, que corajosas”. Ponto. “No entanto, Carrón continuava a nos falar sobre elas. Então, talvez houvesse algo para se conhecer... Agora vejo: vivem tão comovidas que arrastam também a mim”. Rose segura uma folha com o nome das mulheres; ao lado de cada um, um valor em xelins. No alto: Contribuição para o Fundo Comum da Fraternidade. As mulheres ouviram o aviso nos Exercícios Espirituais e imediatamente recolheram o dinheiro. Naquele dia Rose ficou olhando elas irem para casa. Nada de boda-boda, as moto-táxis que carregam quatro pessoas, nada de matatu, os ônibus superlotados: foram embora a pé, não tinham mais dinheiro.
“Não se dá aquilo que não se tem”, diz um ditado local. “Se você não se comove pessoalmente, não pode comunicar nada”, comenta o italiano Matteo Severgnini, conhecido como Seve, coordenador pedagógico das duas escolas, em missão há três anos. “No início, passei da ilusão à raiva”. Primeiro a ansiedade em resolver os problemas, depois a desilusão porque nada mudava. “Um dia Rose me disse: ‘Não precisamos de alguém que dirija a escola. Mas de alguém que viva a vocação’. Durante três meses eu não disse mais nada”. Ao invés de falar sobre as coisas, olhou para elas. “Se você fica em silêncio e escuta, entende muito mais”. Como “aquela vez”: uma noite sujaram a escola com o conteúdo de um extintor. O costume é fazer uma assembleia para acusar o culpado, porém Seve perguntou ao rapaz porque tinha feito aquilo, e propôs que ele reparasse o dano denominando-o responsável pelos extintores. “Foi uma transformação. Mas para mim. Os colegas me perguntaram por que eu tinha feito desse modo e eu também me perguntei. A partir daí, começamos realmente a trabalhar juntos, com uma pergunta real, não com a imposição de uma ideia”.
O giz de Michael. Quando a nova Escola de Ensino Médio foi inaugurada, Arnold, 17 anos, tomou a palavra diante dos estudantes, pais, autoridades e diplomatas: “Eu sou Dom Giussani”. As pessoas ficaram paralisadas. Ele continuou, decidido: “Giussani terminou seu caminho e me disse: ‘Arnold, se você quiser ser feliz precisa passar onde eu passei’. Agora cabe a mim”. Quando encontraram CL na escola, Arnold e o inseparável amigo Marvine começaram a se interessar pelas coisas, a tocar e cantar (a comunidade tem um coro maravilhoso), a compor canções, quase todas de amor, em um lugar onde os jovens ouvem falar apenas de sexo e a afetividade verdadeira é um tabu, onde as escolas são cobertas com cartazes intimidadores: “Comporte-se bem”, “Se ficar grávida, será suspensa”, “A Aids mata”.
“O Movimento me deu olhos”, continua Arnold: “Olhava para as coisas, mas não as via. Como a beleza dessa escola, diferente de todas as outras. Dizia: sim, é bonita, e daí? Não pensava que fosse para mim”. Um moderno edifício alaranjado numa colina na estrada de Kireka, com 560 estudantes: muitos levam mais de duas horas para chegar e ficam até à noite para aproveitar a luz que não têm em casa. A primeira coisa que todos dizem é: “Os professores não batem na gente”.
No trânsito selvagem e empoeirado da capital, são muitas as insígnias das escolas, escritas a tinta, a maioria enferrujada. As políticas internacionais incentivam a educação e o Governo favorece muito o setor privado. Mas há um ditado: economizar o bastão estraga a criança. E a palavra de ordem é: demonstrar. “Quando me disseram que aqui não se batia, comecei a rir”, conta Michael Kawuki, que hoje é o diretor: Para mim, o bastão era o único modo para ensinar. Aqui, sou eu que estou aprendendo tudo, com os colegas de trabalho e com os jovens”. Coisa inimaginável num lugar onde a educação é anônima, a distância entre estudantes e professores é abissal não só devido aos números (há classes de 150), mas porque o aluno é considerado inferior e fazer perguntas é insubordinação. Michael olha para os meninos que se enfileiram no grande campo diante da escola para a aula de cultural dance: “Não sabia que cada coisa, mesmo a menor, tivesse um valor. Quando um giz caía no chão eu pisava em cima dele”. Quando viu Seve pegá-lo, o mundo se abriu para ele. E diz, muito sério: “Eu não sabia que isso tinha algum valor”.
Arnold, Marvine e outros estudantes se encontram todas as segundas-feiras para a Escola de Comunidade. Participa Grace, que tem 20 anos: “Minha vida tem significado desde 2013”. É comovente vê-la cantar as canções do Movimento, que logo aprendeu, e o modo como é cheia de certeza e transparente: “Não dava importância a nada. Depois, um dia, alguém me disse: ‘você tem um coração grande’”. Seu pai morreu há pouco tempo: “Quando aconteceu, entendi que Cristo queria que eu dependesse d’Ele. Todas as manhãs acordo para ver o Seu olhar”. Manuel é um pequeno adulto com gravata, perfeitamente vestido em seu uniforme escolar. É soropositivo. Durante uma visita ao hospital, olhava para o médico que o examinava e pensava: “Você pode saber tudo de mim, mas nunca poderá ver o que significa ser amado”. Solange, ao contrário, sentia-se sempre no lugar errado na hora errada. “Sempre?”, Seve lhe perguntou um dia. “Não, exceto à noite, quando olho para o céu”. Desde então descobriu que tem o mesmo coração de um homem muito famoso (Leopardi): “Estaria morta se não tivesse encontrado uma amizade que carrega o significado da vida”.
O ambiente da cooperação internacional faz acreditar que a necessidade do homem seja a capacitação, “mas, ao contrário, é isto: ser amados. Você descobre isso em você porque quer mudar o mundo e, no entanto, é você que muda”, diz Marco Trevisan, que trabalha na AVSI com as adoções à distância (são 4.180 crianças mantidas). Perito técnico, está na África há 28 anos. “Parece que foi ontem! Aqui a vida passa depressa, porque a sua presença é sempre solicitada. Nestes anos descobri que quando alguém diz ‘sim’ vê coisas sobre si que nem imagina”.
No Nilo. É quase noite. Fora das casas há sofás de couro vincado, as pessoas estão sentadas, olhando, no lugar da TV, o congestionamento de carros, animais e carretos. Na esquina escura, sem iluminação pública, um pregador se esgoela com uma Bíblia na mão. Atrás do mosquiteiro das janelas Francesco e Sara preparam a mesa: em Uganda há oito anos, têm dois filhos. Francesco Frigerio é engenheiro e está construindo um santuário em Paimol, em honra dos dois mártires desse vilarejo do Norte: era 1918, Daudi e Gildo tinham 14 e 16 anos, como os meninos da Escola Média. Tinham sido enviados para abrir um catecumenato e foram mortos. “Para um construtor, fazer um santuário é o máximo”, conta, “mas está adquirindo o mesmo valor reformar um banheiro. Para mim não é óbvio. Tinha caído na armadilha de conceber-me por aquilo que faço. Na companhia do Movimento redescobri que meu valor é ser Francesco do modo como o Senhor me quis”. Sua mulher fala de um caminho de quedas e recomeços. “Você vive alguns dias críticos, depois acontece algo que desperta você”. Como um encontro na escola: coisas ouvidas e reouvidas, se diria, porém “devolveu-me a mim mesma. Mas isso não se pode decidir fazendo planos, é preciso se envolver em uma vida”. No jantar também está Manolita que vive em Uganda há 15 anos, com o marido Setefano Antonetti e os cinco filhos. “Antes, a comunidade, as obras e todo o resto eram coisas bonitas, sim, mas não tinham a ver comigo”. Participava do Movimento há muito tempo, era como se não houvesse mais nada de novo. Depois, o desafio do trabalho no Meeting Point e a amizade renascida com alguns fez as coisas mudarem: “Foi um encontro dentro do encontro. A experiência de um cuidado do Senhor presente para mim”.
A mesma razão pela qual “as mulheres de Rose” se divertem mesmo quando, no último dia do passeio, um temporal violento deixa todos reféns durante duas horas dentro de um ônibus quebrado no meio da savana. As estradas intermináveis de terra vermelha, as cachoeiras do Nilo, as colinas de esmeralda que fazem de Uganda a Pérola da África. “Já temos tudo”, diz Agnes: “Só precisamos de educação”.
Da colina. Aqui, onde educar não é considerado um trabalho, o método nascido do carisma chega a cada vez mais pessoas. Diante das prisões da capital, há o Permanent Center for Education Luigi Giussani, que o Governo reconheceu oficialmente como Instituto Superior de Educação. Com uma formação baseada no livro Educar é um risco, em dez anos já encontraram mais de 20 mil pessoas: católicos e muçulmanos da África a Myanmar... “Também formamos jovens agricultores, pais, assistentes sociais, funcionários de ONGs”, conta o responsável, Mauro Giacomazzi, no país desde 2007: “A pessoas precisam, antes de mais nada, redescobrir a si mesmas”. Como a professora que, num treinamento, quis agradecê-los: “Vocês salvaram o meu casamento. Queria deixar meu marido, mas vocês sempre dizem que um problema é uma oportunidade, então voltei para casa e conversei com ele, como não fazia há muito tempo”.
É madrugada. O jeep de Rose desce devagar a colina onde mora. À frente, ao longe, avista-se o grande Lago
Vittoria, e a cidade imensa, os barracos a perder de vista, toda aquela necessidade. “Vendo isto, Giussani me disse: “Rose, salvar o mundo é gritar Cristo a todos. É viver o seu sim para que o destino deles se cumpra do modo como Deus quer. Como está se cumprindo o seu’”.
(Texto publicado na Passos 176, dez/2015)
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