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OS FATOS

O que há por trás deste médico?

por Alessandra Stoppa
20/07/2016 - Viver a fé em São Francisco, onde as evidências mais familiares desmoronaram e foram enterradas. E tudo está imerso em uma “religião natural”. Testemunho de Francesco Boin, médico e professor da Universidade da Califórnia

“Aqui até a tinta das paredes é sustentável”. Isso é algo que logo o impressionou. Francesco Boin, 48 anos, italiano nascido na região das Dolomitas, mora e trabalha em São Francisco há um ano. Onde tudo é biológico e tudo está bem. Algumas pessoas vão ao supermercado de pijama e há quem vá viver em árvores para que não sejam derrubadas. Você ainda nem apoiou a maleta e alguém pergunta se quer maconha para enfrentar o dia. E, no abraço da paz na igreja, dois homens beijam-se com entusiasmo. “É como se tudo estivesse imerso em uma religião natural”. A religião da espontaneidade.
Com certeza, parece que aqui o trabalho não é tudo. Não como na Costa Leste dos EUA, onde, para abrir espaço no sistema americano, Francesco defrontou-se durante dezesseis anos com resultados e objetivos cada vez maiores. Primeiro, o diploma em Medicina, em Pádua, e especialização em Imunologia; depois exames e seleções para entrar na Mayo Clinic, em Rochester, Minnesota, onde fez mais uma especialização em Medicina Interna; mais seleções, outra especialização (em Reumatologia) e cinco anos de bootcamp, trabalho duro, para entrar finalmente como professor na Johns Hopkins University, de Baltimore. E, hoje, está na Universidade da Califórnia. Uma corrida sem trégua. “Mas não terminou. Você nunca chega. Aqui, os contratos acadêmicos são renovados anualmente e é preciso continuamente se aprofundar, fazer pesquisas e publicá-las, encaminhar projetos às agências governamentais e não governamentais. É uma luta pela sobrevivência”. Ainda mais se, como ele, criar um laboratório próprio. “É um sistema baseado no mérito e na excelência, que valoriza muito as capacidades. Mas é também um triturador”. Há sempre uma avaliação pesando sobre você. “Sobretudo, quando se é um imigrante”.
Hoje, é cidadão americano e é muito grato pelo desgaste que não lhe fez nenhuma concessão, nem mesmo de poder parar quando obtinha sucesso. “Essa realidade tão exigente ajudou-me a nunca perder a profundidade da pergunta: em tudo isso, onde eu estou? O que busco realmente? O que dá respiro à minha vida?”. Renovar a sua resposta a essas perguntas tornou-o estável em um mundo que sempre aumenta o nível de exigência.

Abertura ao outro. Francesco é Memor Domini. O vórtice de uma vida assim, longe de seu país e em um ambiente no qual as evidências mais familiares desmoronaram e foram enterradas, colocou à prova a fé transmitida por seus pais (“fui educado com uma percepção viva da vida como doada e guiada pela Providência”) e aprofundada no encontro com o Movimento, na Universidade. Pouco a pouco viu que ou o trabalho é um ponto da vida, ou engole toda a vida; para ele tornou-se um lugar onde “posso descobrir mais profundamente o que espero, o que desejo, o que em última instância me move”.
Isso também vale para o momento atual, no outro lado dos Estados Unidos, na Califórnia, onde o trabalho não é sempre tão totalizante. A impressão ali é que as pessoas não se preocupam muito, as reuniões são feitas de camiseta, informais e, em seguida ao Conselho da Faculdade, algumas vezes são propostos passeios pela praia juntos, para “se enturmar”. É como se carregasse uma sugestão: na vida, há algo além do trabalho. “Mas esse algo permanece completamente confuso. Há o desejo de fazer parte de algo grande, no entanto, teme-se qualquer pertença objetiva. Domina um forte senso de liberdade individual: a cada um deve ser garantida a possibilidade de se expressar como desejar. Mas é um valor neutro, no qual não deve haver interferência”. Um padre acabou em rede nacional porque não permitia coroinhas do sexo feminino. Crianças de oito anos, entrevistadas, se lamentavam por ser discriminadas e diziam que seus direitos tinham sido violados. “Absorvem essa ideia de liberdade”, tão absoluta que acaba por aprisionar. “É um paradoxo”, diz: “A preocupação exasperada pelo respeito do outro, torna-se distância nos relacionamentos”.
Dois meses depois da sua chegada, no trabalho morreu um enfermeiro de 23 anos. Os colegas organizaram um momento de memória: cada um se levantava para lembrar como era aquele enfermeiro, suas capacidades, diante de um pequeno altar com uma cascata iluminada por uma vela, e dos pais desesperados. Ao fundo, música ambiente. Francesco também decide se levantar para dizer o que é importante para ele: “Diante da morte nasce forte o pedido de que a vida tenha um destino, que não termine. Este é o momento de descobrir a perspectiva última para viver o presente. Não podemos diluir esse pedido nas recordações”. Os pais o agradecem, e não é óbvio, porque “é grande a relutância em se expor, temendo dizer algo que possa ser politicamente incorreto”, por causa de uma ideia de liberdade que, ao invés de nos lançar na realidade, nos paralisa.
“A resposta de nós, cristãos, a uma mentalidade assim, pode ser uma reação, uma defesa, ou um relacionamento”, que é o que nos abre ao outro, ao seu coração, que suspira como o nosso.

Dois milhões de dólares. Uma paciente sua, muito rica, convidou-o para uma festa beneficente no Museu de Arte Moderna. No monitor, apareciam as doações em tempo real. Em 37 minutos foram arrecadados dois milhões de dólares. Ele olhava para as pessoas na mesa que, enquanto doavam, já estavam falando do próximo evento. “Emerge uma necessidade que nunca é satisfeita, uma busca frenética em fazer algo de útil”. No carro, a caminho de casa, com a paciente e o marido, ela diz: “Sinto muito, mas esta noite gostaria de ter falado com você sobre coisas bonitas. É sempre uma festa quando podemos estar juntos”. “Pensei naquela necessidade”, diz Francesco, “e no fato de que não é o dinheiro que a satisfaz. E que a mim, foi dado algo mais precioso que posso dar”.
Quando ainda estava na Johns Hopkins, durante uma reunião de todos os pesquisadores onde são apresentados e discutidos os resultados do trabalho, seu chefe conta que o editor de uma famosa revista tinha dúvidas sobre alguns dados do seu artigo. E disse: “Quero lhe fazer uma pergunta: por que precisamos ser impecáveis na pesquisa? Por que não se pode enganar?”. Silêncio geral. “Porque com o nosso trabalho contribuímos para descobrir um pedacinho de verdade: pequeno, infinitesimal, mas queremos descobrir aquilo que é verdadeiro na realidade, e a Verdade com V maiúsculo”. Francesco se comove: “O que é verdadeiro na realidade, para mim tem um rosto, Jesus. Aquilo que para meu chefe é uma intuição, é uma realidade que eu encontrei”. Uma provocação que lhe dá um ímpeto novo: “Isso me fez descobrir de onde nasceu a minha paixão pela pesquisa científica. Mas, sobretudo, me fez entender que todos se movem na realidade para descobrir o que é verdadeiro, por causa de uma atração última pelo verdadeiro. Vale para todos e em tudo”.
Uma moça da faculdade o procura porque ficou grávida “acidentalmente”. Está tomando remédios que podem fazer mal ao feto. Sua mãe logo lhe disse para abortar e ela lhe pede ajuda. “Não pense que é um problema que foi colocado sobre seus ombros. Qualquer decisão que você tome, vai carregá-la para sempre, portanto tem a ver com o sentido último da sua vida. Você deve olhar para dentro de si e se perguntar o que realmente deseja para essa criança. Depois, pense que pode ser a sua única gravidez, não é você que decide. Se quiser, estou aqui”. Depois de três dias, ela lhe telefona: “Eu desejo que esta criança possa viver. Vou tê-la”. E ele a acompanha como pode, nos passos que dá, também no desespero que ela sente quando lhe telefona contando que fez o aborto. Não suportou a grande pressão da família. “Mas ela descobriu o que era verdadeiro. O tema da vida emergiu da sua experiência, porque na realidade existe aquilo que corresponde ao coração. Precisamos de algo que vença o medo de olhar para isso profundamente”.
Também num mundo assim, onde você pode fazer tudo o que quiser, a realidade coloca em discussão o desejo de sermos felizes. “Mas em discussão, nesse nível, devo estar eu. Também implicitamente, mas eu por mim mesmo. Somente assim posso acompanhar o outro”. Vê isso com seus pacientes, que têm doenças autoimunes, como lúpus ou esclerodermia, que podem ser tratados, mas não curados. São doenças crônicas, “e por isso é grande a tentação de desistir”, a depressão é comum. “A partir de que posso dar-lhes coragem? Não pelo fato de curar suas doenças, não seria realista. Mas lhes digo: estou disposto a caminhar com você”. A olhar, juntos aquela circunstância que ameaça a felicidade e, talvez, descobrir o seu sentido. “Essa partilha muda tudo, inclusive o aspecto médico da condição deles. E minha primeira contribuição é que eu responda, para mim, à ferida que a realidade me dá”.
Um discurso não ajuda a entrar no drama que a vida abre. “A verdadeira batalha cultural, aqui, é reconstruir a partir de uma plenitude de vida vivida. Então, minha tarefa é ceder à atração que a realidade gera nos meus dias e à descoberta de como Jesus responde à minha necessidade. Os outros percebem isso, porque o que os atrai é o respiro que me faz viver. A possibilidade de testemunho é que vejam em ato em mim aquilo que eles estão buscando”.

Cursos de liderança. “Então, você tem família?”. Perguntou-lhe, um mês antes de sua chegada, o chefe geral do seu setor, convidando-o para jantar. “Não, não sou casado”. “Ah, é divorciado?”. “Não, nunca me casei”. “Então, tem namorada”. “Não, não tenho nenhuma mulher”. O outro diz: “Bem, não se preocupe, aqui em São Francisco você vai encontrar logo um homem. E você também pode se casar”. Ele o interrompe: “Não, olha, eu não sou homossexual, não tenho essa tendência...”. Pouco depois disso, começaram a trabalhar lado a lado em um projeto, todos os dias durante alguns meses. Até surgir o segundo convite para jantar.
Desta vez, no meio da noite, o colega lhe diz: “Preciso perguntar uma coisa. Quero entender. Você não tem mulher, não tem homem, mas tem um ponto de estabilidade, pois isso se vê. O que há por trás?”. Responde Francesco. “Olha, a minha vida não é acaso. É uma vida dedicada. Sou católico e, para mim, a experiência da fé foi o encontro com uma Presença tão viva e tão atraente que eu dei a vida a Ela. Meu ponto de estabilidade é esse relacionamento”. O colega fica em silêncio. Depois, diz: “Agradeço. Sei que é uma coisa assim que me falta. Continuo fazendo cursos de liderança sobre como motivar o pessoal a dar o melhor de si. Mas acho esses cursos sufocantes, inúteis, abstratos. Depois, eu e minha esposa não somos religiosos... porém, ultimamente, olhando para meus três filhos... sinto um nó na garganta, porque penso: que perspectiva dou a eles? Que ponto de apoio dou a suas vidas? O que você me disse me ajuda e entendo que é a coisa mais importante. Podemos nos encontrar outras vezes?”.

(artigo publicado em Passos 179, abril 2016)

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