Melhor dizer logo: vocês encontrarão o coração deste artigo no texto de padre Julián Carrón publicado na Passos de outubro. Em A forma do testemunho, a síntese com a qual o guia de CL fechou a Assembleia Internacional de Responsáveis (AIR) realizada em Cervinia (Itália), no final de agosto. Mas para chegar a este texto, que deverá ser trabalhado profundamente nas próximas semanas, foram necessários quatro dias de diálogo intenso e, sob diversos aspectos, novo. Por causa do formato da AIR, com menos pessoas presentes (250 de todo o mundo, praticamente a metade do ano passado), mais momentos para colocar perguntas e aprofundar certos pontos “ao vivo”, e também pela intensidade, vontade e desejo de entender. De dar passos.
Foi feito um percurso que vale a pena repercorrer, mesmo que brevemente. Porque emergiram palavras urgentes como “certeza”, “testemunho”, “misericórdia”, “diálogo”... E porque o que aconteceu ali, naqueles dias, é realmente um tesouro a ser explorado e divulgado. Sem pretensão de completude (para isso, seria preciso um livro), mas para dar pelo menos uma ideia de um trabalho que foi realmente sem trégua. E uma vez que para falarmos do resto – das conversas à mesa, do café, dos passeios – seria necessário um segundo volume, nos limitamos ao essencial, àquilo que aconteceu diante de todos.
Para iniciar os dias, e retomar o fio das “circunstâncias pelas quais o Mistério nos faz passar, essenciais para entender o que significa ser cristãos no mundo”, Carrón se apoia em um “companheiro de caminho inesperado”: Zygmunt Bauman, sociólogo. Cita uma sua entrevista publicada no jornal Corriere della Sera. A entrevista fala da insegurança que nos assola, do “medo existencial” e de suas raízes profundas, plantadas na falta de laços. Da ilusão de responder a este medo “levantando muros”. E da lucidez sobre o que acontecerá depois, quando esta tentativa tiver passado pelo crivo da história e, diz Bauman, “uma vez que novos muros forem levantados e mais forças armadas colocadas em ação, uma vez que a quem pede asilo por guerras e destruições essas medidas forem recusadas e mais migrantes forem repatriados, tornar-se-á evidente como tudo isto é irrelevante para resolver as verdadeiras causas da incerteza. Os demônios que nos perseguem não desaparecerão”. O medo é mais profundo. Não é buscando ali que a resposta será encontrada. “O verdadeiro fundo da questão é o que pode desafiar este nada”, diz Carrón: “Ainda acreditamos que o método de Deus pode vencê-lo? Que experiência fazemos da fé? Vence o laço ou a incerteza? O fascínio ou o nada?”. O jogo está aberto.
E o primeiro tempo é a Assembleia da sexta-feira de manhã. Um “trabalho entre a certeza e os desafios”, define-a Carrón, entre a consciência de que “podemos olhar para tudo sem medo por causa da presença de Cristo entre nós e a verificação do modo com o qual respondemos, porque as respostas aos problemas não são todas iguais”. Enrico, de Angola, contou sobre a conversa que teve com um funcionário quando precisou despedi-lo: “Eu lhe explicava as razões: a crise, o PIL... Mas ele estava desolado: ‘E agora, o que vou dizer em casa?’. Entendi que meu modo de agir não era adequado. Dei-lhe o telefone de uma amiga: ‘Vamos ver se ela pode fazer alguma coisa’. Ele pegou o número e disse: “’Bom, pelo menos com você é possível falar’. Em suma, uma coisa são os muros que criamos com as razões, mesmo justas, e outra, o laço gerado por algo que rompe o esquema”. Aí está: dar as razões. “Para nós, significa explicar a situação de modo que o outro entenda, ou seja, preocupando-se com o seu destino, para que possa ouvir aquilo que está propondo, por mais que seja difícil para ele”, observa Davide Prosperi: “Caso contrário, se nos atemos à situação da empresa e assim por diante, somos como todos”. Nos dias que se seguem, voltará muitas vezes essa “desolação”: “Porque é o sinal que mostra se o modo com o qual nos movemos é adequado ou não, se chega até o outro ou não”, observará Carrón.
Outras colocações se seguem. Fala-se de uma sociedade que “deve recuperar, a partir da experiência” certas tradições, fala-se da descoberta de companheiros de caminho “com os quais nos sentimos ainda mais unidos do que com algumas pessoas do Movimento, porque se vive o Mistério juntos”; da importância de ser “vulneráveis, de deixar-se tocar pelas coisas assim como acontecem”.
Depois, Alfredo Fecondo, padre em Novosibirsk, no meio da sua colocação diz uma frase capital: “A certeza que tenho de ser amado agora, por um rosto preciso, me faz abraçar toda a realidade”. Carrón comenta imediatamente: “Aqui se entende o que tem a ver a certeza com a posição cultural que levamos ao mundo. Alguém que tem esta certeza pode abraçar todos os indícios de verdade que existem e coloca sobre a realidade um olhar diferente”. Retoma algumas palavras de Giussani de 1982, que são bastante esclarecedoras: “Eu lhes pergunto se o problema de uma fé que se torna cultura não está muito mais na certeza da fé do que na esperteza da passagem para a cultura”. E roga para que isso não seja dado por óbvio, porque “sem isso não há Movimento”.
Mariella, da Itália, também lembra “um episódio de Giussani”: o lançamento do livro que, segundo o editor, deveria se chamar O Amor a Cristo e que, porém, por vontade do autor, recebe o nome de A Atração de Jesus. “Entendo agora que são dois mundos diferentes”: no primeiro, o centro pode ser “a minha dedicação a um ideal, a minha tentativa”, no segundo, o coração se torna “a comoção por uma presença. É a atração de Jesus que nos torna mendicantes da realidade. E, então, a minha proposta é diretamente ao coração do outro. E também não tenho medo do método de Deus que, para mim, é lentíssimo...”. Emerge outra coisa. Sobre o testemunho, que não significa “mudei, tornei-me capaz de fazer algo”, observa Prosperi: “É um contínuo semear; e quanto mais vou adiante, mais me dou conta de que eu não sou o semeador, mas o campo que é semeado. O ponto é a minha disponibilidade”.
À tarde, também se pode ver bem isto, na palestra em que Costatino Esposito, filósofo italiano, retoma as passagens fundamentais que aconteceram nos últimos tempos, o “novo percurso de conhecimento e verificação do carisma” iniciado com a audiência de 7 de março de 2015 com o Papa. O título é significativo: Uma presença original: aquilo de que realmente precisamos. Esposito fala do “nada desenfreado ao qual é preciso responder”; da possibilidade de “descobrir que Cristo nos arranca do nada atraindo-nos a si” e que “não há via de acesso à verdade a não ser a liberdade”, porque a verdade “não é algo estabelecido de uma vez por todas, mas algo que acontece na experiência”, e o único caminho para compartilhá-la só pode ser “o diálogo e o encontro”. Cita fatos e exemplos nos quais emerge “uma verdadeira postura crítica” (as tomadas de posição sobre a questão da Lei Cirinnà, na Itália, certos panfletos de juízo no exterior, o relacionamento do Movimento com a política) e desemboca no grande tema do Ano Santo: a misericórdia como chave de leitura do mundo, “possibilidade de entender e conhecer tudo o que é humano”.
Seguem-se perguntas, aprofundamentos. “A origem de muitos de nossos problemas está na insegurança de fundo: como se às vezes disséssemos ‘o mundo é ruim, mas, pelo menos, encontramos o Movimento’”, observa Esposito: “Mas, se é assim, não muda nada, pensamos como todos, a realidade é irreparável. Não há mistério na realidade”. Porém, tudo muda se muda o ponto de partida: “Como Cristo olha para a necessidade do homem?”.
“Olhem, nós estamos tão habituados a falar da Samaritana que nos parece normal”, observa Carrón. Mas nos escapa um ponto decisivo: “Jesus se dirige ao seu desejo, não à tentativa equivocada que tinha feito para satisfazê-lo. De onde parte o olhar? Desta sede de uma água que sacie para sempre. Não é criticando a tentativa desajeitada que respondemos ao desejo. Se o homem não encontra resposta à sede, continua buscando em outro lugar”. Por isso “se não entendemos a natureza da necessidade, fazemos tentativas cegas”. E por isso a verificação é decisiva, porque a verdade “só pode ser descoberta pela liberdade: não é um conjunto de fórmulas ou doutrinas”. Ou passa pela liberdade, ou não atinge, não incide. Em última instância, não existe. E então, o que acontece quando lançamos estas coisas diante de todos, no mundo?
Intui-se a resposta na noite do próprio dia, com testemunho de três universitários: Stefano, Max e Melissa. Eles falam do trabalho que a Diaconia e o encontro semanal com o próprio Carrón os leva a fazer (“sem discursos, apenas experiência: partimos de um fato, das perguntas que ele suscita, e nos ajudamos a entender qual o seu alcance, o que nos faz descobrir sobre nós mesmos”). E falam do quanto cresceram seguindo este método. A ponto de se jogarem, exatamente, no ambiente (não é por acaso que todos falam de episódios ligados às atividades dos diretórios estudantis).
Mas isso fica mais evidente na manhã seguinte, sábado. O tema é A Beleza Desarmada e as apresentações públicas do livro de Carrón. Também aqui, em um diálogo. No palco, Davide Prosperi (que faz a introdução desconcertando a todos com as palavras ditas por Giussani em 1998: “Realizem a dinâmica da nossa amizade, que é a realização das exigências do coração, sem a qual o niilismo seria a única consequência possível”) e Alberto Savorana, interrogados pelo próprio Carrón. Em seguida, no telão, meia hora de vídeo com rostos projetados sequencialmente: Riotta e Bertinotti, Tauran e Legnini, Violante e De Bortoli. E advogados, médicos, escritores, empresários... Todos convidados para apresentar o livro, mas sobretudo para participar daquilo que, diz Carrón, “para mim, era uma tentativa de ver se o que dizíamos entre nós – sobre a Europa, o terrorismo, o islamismo, os desafios do presente – poderia se manter diante de todos, não apenas nas nossas reuniões...”.
O primeiro a ficar impressionado foi ele mesmo. Porque o livro, como observa Savorana, “abriu processos em muitos, abriu caminhos e desarmou pessoas”. Provocou encontros verdadeiros, amizades capazes de falar “até às questões mais íntimas”, diz Carrón. Mas, sobretudo, “cresceu em mim a liberdade de me colocar. A primeira verificação foi para mim”. Porque a resposta que vivemos, “precisamos dizê-la diante de todos” para ver “se o outro percebe como correspondente aquilo que carregamos. ‘Vinde e vede!”.
Também aqui, um diálogo. Com Giorgio, que observa como “seguir as pessoas tocadas pelo encontro, obedecer a realidade de quem encontramos nos conduz a paisagens desconhecidas”: é uma dinâmica que faz parte do nosso DNA inicial”, observa Prosperi, pertence ao carisma originário, mas exatamente por isso é descoberta em sua origem. Fala-se sobre ecumenismo, sobre “afirmar o positivo onde existe”. De uma experiência de correspondência profunda que Dima Strotsev, poeta bielo-russo, exprime em dois versos brilhantes: “Não posso dar-te o significado, mas posso transmitir-te a minha vibração”. E quando se chega à pergunta que muitos têm, mas que Pigi formula da maneira mais simples (“por que a forma do testemunho é tão importante?”), acende-se uma luz decisiva, que segue muito do que vocês podem ler no artigo de Passos.
Outro passo crucial acontece na mesma tarde. No palco, Marta Busani, historiadora da Universidade Católica de Milão, autora de um livro preciosíssimo sobre as origens de GS (primeiro núcleo de Comunhão e Libertação). Alguns já ouviram falar dela ou podem estar lendo seu livro aos poucos... No entanto, o que se mostra tem um sabor novo. Não apenas pelos aspectos do conteúdo, todos muito atuais (a originalidade de Dom Giussani no contexto da Igreja, sua descoberta do sentido do eu, a aposta inesperada no desejo e na experiência, o relacionamento com Montini, a caritativa, a comunidade, as reuniões chamadas de Raio, o diálogo como “comunicação de uma vida”...), mas pelo diálogo que abre sobre o trabalho, sobre as descobertas que ela fez (“aprendi a não ter pressa de fechar as questões, que as perguntas eram maiores do que as respostas e que é preciso ter paciência porque precisava deixar-me provocar até o fundo”), sobre a liberdade. E quando chega a pergunta sobre “por que corremos o risco de perder pelo caminho todas essas coisas que temos no nosso DNA da origem?”, torna-se ocasião para outro aprofundamento de Carrón: “Decaímos porque somos frágeis. Mas isso não é uma novidade. Também no Evangelho, o percurso dos discípulos é um contínuo ver e decair”. A notícia verdadeira é outra: “É esta preferência única de Cristo por nós que nos arranca do nada. Ao invés de olhar para os nossos erros, devemos olhar para isso”. Todos saem plenos de silêncio. À noite, voltam para o salão para escutar, com o mesmo silêncio, as notas de Harmonias de Giotto, o concerto do pianista brasileiro Marcelo Cesena que descreve, através da música, a Capela Scrovegni, de Pádua.
No domingo de manhã há um passeio. E em uma série de diálogos, perguntas e histórias compartilhadas, aparece a história de Daniele que fala do que está descobrindo com a mudança de trabalho, Lujba que traz as dúvidas de um amigo cazaque, Domantas que conta sobre a amizade que está crescendo com o professor que em Vilnius, Lituânia, convidou para o encontro com Carrón...
Não há desacordo com a segunda parte da Assembleia, que acontece à tarde. Adele fala sobre seus funcionários (“dez jovens de nacionalidades diferentes”), que mudaram e cresceram quando ela realmente decidiu entrar em diálogo com eles, porque ali havia algo de bom para ela: “O outro pode até nunca se desbloquear, mas eu começo a mudar o meu relacionamento”. “Aí está, a questão é se entramos em relacionamento com o outro com esta misericórdia”, observa Carrón, ou “desafiando a sua humanidade”. Gianni fala como a hipótese de encontrar no outro um bem fez florescer o relacionamento com a mulher e, depois, por consequência, com os outros (“comecei a olhar para meu chefe como olhava para ela”). E Carrón completou: “Este é o método: a chave de mudança de uma concepção é uma história particular. Ele fez essa descoberta no relacionamento com a mulher, mas a partir daí entendeu o alcance cultural dessa experiência em relação a tudo. Nós achamos que isso é pouco”, no entanto este método “tem o poder de destruir a ideologia”.
Outras histórias, descobertas, observações. Enfatizando a pretensão que temos, muitas vezes, de esperar do outro “certas posturas que só podem ser despertadas pelo encontro, se acontecer a eles o que nos aconteceu”. A retomada do “sim de Pedro”, daquela afirmação de arrepiar (“mesmo que eu caia mil vezes, não posso deixar de dizer: Senhor, eu te amo”) e da “vertigem última” que só pode viver “alguém que se apoia sobre algo diferente, sobre um relacionamento profundo”. Fala-se dos filhos, como acompanhá-los na descoberta da sua vocação (“ele questiona você, pergunta, porque o homem quer dirimir as dúvidas. Mas você sabe responder? Sabe o que o Mistério decidiu para ele? Se diz que sabe, está mentindo”. E, então, “que certeza você deve ter para estar com ele sem fugir, mas também sem responder por ele as perguntas; para aceitar essa vertigem...”). E fala-se de muitas outras coisas.
Última noite. Padre Stefano Alberto fala rapidamente sobre a Iuvenescit Ecclesia, a Carta da Congregação pela Doutrina da Fé sobre os carismas e Movimentos. Um texto que deve ser retomado e aprofundado para entender a maturidade à qual somos chamados no momento em que a Igreja enfatiza de uma vez por todas a “coessencialidade entre dons hierárquicos e carismáticos” e lembra que “tanto uma contraposição quanto uma justaposição deles seria sintoma de uma errônea ou insuficiente compreensão da ação do Espírito Santo”. Roberto Fontolan fala sobre a atividade do Centro Internacional nos últimos tempos. O que quer dizer servir a Igreja, que perspectivas se abrem quando se substituí a autorreferencialidde pelo desejo de “fazer juntos”. Fala de fatos, encontros, inciativas que estão nascendo junto a outras realidades eclesiais. Sobre o que se ganha “seguindo aquilo que não fomos nós que programamos”. Para lançar pontes, não levantar muros. Exatamente como se lê na síntese...
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