Chegamos aos Exercícios da Fraternidade, em Itaici (de 19 a 21/05, no município de Indaiatuba/SP), com o país de cabeça para baixo. Ao entrar no salão, dois enormes banners chamavam a atenção: a imagem de Jesus curando um hidrópico (mosaico da Catedral de Monreale) e a frase com o título destes Exercícios: O meu coração é feliz porque Tu, Cristo, vives. Começamos com uma canção que os mais novos talvez não conheçam: La guerra . Composição de Claudio Chieffo, grande músico de CL falecido em agosto de 2007. Fala de “dia desperdiçado”. Quantos dias foram desperdiçados por nós no último mês? Na última semana?
Quem nos fala, através da gravação dos Exercícios realizados na Itália semanas atrás, é Pe. Julián Carrón, presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação. Ele começa com uma observação sobre o novo livro de Luigi Giussani, Una strana compagnia , que contém o texto dos primeiros Exercícios da Fraternidade, de 1982 (mais os textos de 1983 e 1984). O tema é a história, aquilo que vivemos, o tempo – para que serve, afinal, o tempo –, a distância. “É possível que haja um afastamento de Cristo no que diz respeito às emoções de tantos anos atrás”, esta, explica Carrón, era a preocupação de Dom Giussani naqueles primeiros Exercícios, que também festejaram o reconhecimento oficial do Movimento por parte da Igreja. O distanciamento do nosso coração de Cristo nos torna distantes de tudo, da realidade, da humanidade, esta é a preocupação. Parte-se daqui, e do poeta Charles Péguy, tão importante para a nossa história. Péguy tem um temperamento humano e é um tipo de homem que, mesmo tendo falado há 100 anos, ainda hoje nos ensina muito.
A frase chave evidenciada por Pe. Carrón diz respeito à salvação cristã ligada à liberdade. Uma salvação que não viesse de um homem livre, não significaria mais nada para nós. É o Mistério cristão da encarnação: Deus não quis impor Seu Filho. Ele, Jesus Cristo, a salvação, se propõe à nossa liberdade. Sempre. E Péguy diz: a quem interessaria uma salvação que não fosse livre?
Então, nesta primeira noite, onde uma humanidade encurvada e cansada, distraída e distante, parece já começar a dilatar-se no abraço de uma multidão em silêncio, a questão é: esta salvação ainda nos interessa? Interessa-nos, como no início? Como naquela vibração do início? E, ainda, uma pergunta sobre o tempo: amadurecer tornou Cristo mais familiar a nós? Carrón explica que é preciso um empenho para manter a nossa humanidade aberta, escancarada a Cristo que acontece e reacontece, obstinadamente. Não basta a espontaneidade. E há um perigo que se chama formalismo: repetir palavras e gestos sem que a minha humanidade e a minha liberdade entrem realmente em jogo. É por isso que nasceu o Movimento: para evitar que os cristãos se afastem da vida, da humanidade, da experiência.
Sábado de manhã, cantos e Laudes. Se “distância”, “salvação” e “liberdade” foram as primeiras palavras evidenciadas, a palavra chave do sábado de manhã é “pobreza”. Desta vez, Carrón parte da carta que o Papa Francisco nos escreveu em agradecimento pela doação por ocasião do Jubileu da Misericórdia. E com as palavras do Papa e de Dom Giussani nos faz olhar para a experiência da pobreza. É preciso descobrir a nossa pobreza constitutiva. A pobreza é o reconhecimento daquilo de que o nosso coração é feito. E do que é feito o nosso coração? Não são os discursos, os esquemas, os slogans que o definem. É a vida que o diz, se realmente nos comparamos com ela. Quem diz é a realidade, que é teimosa e bate continuamente à nossa porta. O grande poeta e escritor argentino Ernesto Sabato disse, certa vez, que uma necessidade de Absoluto atravessa seus personagens. Um aperto no coração, uma amargura nunca satisfeita. E Carrón nos descreve: a experiência da desilusão exaspera esta sede de Absoluto. O pobre não tem nada para defender a não ser a própria natureza. Jesus o chama bem-aventurado.
E há outra necessidade: a necessidade de perdão, a sede de um olhar que nos faça recomeçar. Carrón cita o personagem Miguel Mañara, um homem que vive o drama de não conseguir arrancar de si o próprio pecado. Não consegue aceitar o perdão e, portanto, não sabe mais amar de verdade. É preciso um movimento da nossa liberdade para aceitar o perdão. Um pequeno movimento, uma intenção, subir em uma árvore, como aconteceu com Zaqueu. Porém, normalmente, nós, assim como Mañara, não aceitamos Sua mão estendida. No entanto, e é a última reflexão da manhã, é a Sua presença que nos muda. A Fraternidade é o lugar onde somos educados à nossa humanidade, educados à pobreza necessária para reconhecer a presença de Cristo e para aprender a olhar tudo.
À tarde, um canto em inglês: Jesus gave me water (Jesus me deu água). O tema é o encontro evangélico entre Jesus e a Samaritana. Introdução ideal para uma tarde dedicada ao Evangelho. Por exemplo, a experiência do encontro de Zaqueu com Cristo: “Zaqueu, desce porque hoje vou à sua casa”. E depois: “A salvação chegou a esta casa”. E, ainda, João e André, o encontro que fizeram e toda a vida que se torna outra, com as mesmas dificuldades, os mesmos atores, os mesmos lugares, mas outra vida. Não é um passado, não é uma lembrança. “O presente mais presente foi o presente daquele dia”. Cristo chama você, nos chama, bate à porta da sua liberdade e gera uma mudança, que é um desenvolvimento da sua humanidade, uma amplificação positiva da sua humanidade, da realidade. Uma água que sacia a sede para sempre: Jesus gave me water. Que história!
Nasce, assim, a virtude da pobreza. Não sou mais definido por aquilo que possuo (e que pode desaparecer em um sopro), mas por aquilo que me aconteceu, um Acontecimento que me tomou e que me torna livre de tudo. Ao mesmo tempo, não censura nada, mas dá valor a todas as coisas. A pobreza é mãe, gera vida de santidade, vida apostólica. Revela-se como liberdade das coisas e a letícia é o sinal que a distingue, o seu traço revelador. E emerge, carregado de significado, o título dos Exercícios, impresso nos cartões: “O meu coração é feliz porque Tu, Cristo, vives”.
No final da meditação, trabalhos em grupos e depois um breve momento para apresentar algumas mudanças na Revista Passos, o instrumento oficial de CL, nascido há 30 anos para comunicar uma vida. Por meio de testemunhos, notícias e artigos, Passos quer ser uma companhia que nos ajude a refletir sobre quem nós somos e sobre como podemos viver a vida de forma mais plena. Por isso, o convite para abrirem o plástico e saborearem a leitura, divulgarem aos amigos e participarem do Dia Nacional a ser realizado em junho.
Na noite de sábado um sarau cultural intitulado “A beleza desarmada”. Quanta gente talentosa junto! A leitura de trechos do livro de Pe. Carrón eram alternados com músicas e poesias. Nas pausas dos almoços e jantares, momento de reencontrar os amigos, falar do que mais marcou das palestras de Carrón, da beleza do coral. Acenos que despertam a vontade de ler e estudar as notas do encontro. Outro ponto que marcou os Exercícios foi a impressão deixada pela última assembleia de domingo de manhã com Davide Prosperi, vice-presidente da Fraternidade de CL, e Pe. Carrón. Gratidão e desejo são as palavras que dominam as contribuições que chegaram. A certo ponto, Carrón afirma: “Somente por Dom Giussani entendi o quanto é humana a minha humanidade”. E ainda: “Nunca decaiu a minha estima pela humanidade”.
A raiz do carisma, a diversidade do Movimento é uma promessa de realização humana, de realização do eu, de cumprimento do coração do homem. Isso mudou e converteu muitas pessoas, isso abriu o caminho para Jesus Cristo, para a possibilidade de salvação. “O santo é um homem verdadeiro”, escrevia Giussani. Assim vem em mente a primeira fulminante sentença da Summa Theologica de São Tomás de Aquino na parte na qual fala de Jesus: “A humanidade de Cristo é a nossa felicidade”.
Voltamos para casa com a provocação de Marco Montrasi, o responsável nacional de CL, nos avisos finais: “Estes dias foram um parêntese para ficarmos juntos e aquecer o coração para tirar um pouco do medo, ou estes dias foram uma ajuda para olhar aquilo que está acontecendo? Não tenhamos medo de fazer essa verificação. Porque aquilo que vimos nestes dias, se fosse um parêntese, se fosse um sonho, seria uma tristeza”.
(com contribuições de Alessandro Banfi)
> Leia também: texto da introdução dos Exercícios da Fraternidade 2017
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