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OS FATOS

A falta que é vida

por Giuseppe Frangi
17/08/2015 - Não é uma “mutilação”, como anseia o niilismo, mas “alimento do desejo” e “abertura ao Outro”. O psicanalista Massimo Recalcati confronta-se com o tema do próximo Meeting de Rímini
Massimo Recalcati.
Massimo Recalcati.

Massimo Recalcati, psicanalista italiano, colunista do jornal La Repubblica, investigador da condição do homem contemporâneo, gosta de virar do avesso os lugares comuns: a “falta” não é um “menos” e sim um “mais”. Porque é justamente a percepção de uma falta que põe em movimento o desejo e, com o desejo, todo o humano... “Lacan, o famoso psicanalista francês, afirmava que a única verdadeira culpa do homem é enganar o seu próprio desejo”, explica: “A clínica psicanalítica confirma que a infelicidade está muitas vezes ligada ao fato de que a nossa vida não é coerente com aquilo que desejamos”.
Massimo acaba de publicar um livro, em que pela primeira vez se aventura na pesquisa sobre a figura da mãe (Le Mani della Madre, Ed. Feltrinelli, disponível apenas em italiano). Um livro que toca um tema fascinante, hoje refém de muitos esquematismos ideológicos de todo tipo. No livro, o tema da “falta” assume um lugar central na reflexão em torno à experiência da maternidade. “A mãe é atravessada pela falta, não a esconde, não a oculta, não a remove, mas a doa”, escreve o autor. “Doar a própria falta – a própria insuficiência e a própria vulnerabilidade – tem o mesmo valor inestimável do oferecer as suas mãos e o seu rosto. Trata-se, para Lacan, da definição mais alta do amor: amar é dar ao Outro aquilo que não se tem”. A falta é o tema do próximo Meeting de Rímini, a ser realizado de 20 a 26 de agosto.

Como título do Meeting temos um verso de Mario Luzi: “De que é falta esta falta, coração, que num repente dela ficas cheio?”. Em sua opinião, em que sentido a falta pode ser algo que preenche o coração do homem?
A falta não é aflição, pena, mutilação da vida. Esta é apenas uma representação niilista. Não é isso que me interessa. A psicanálise põe em evidência que a falta é geradora, porque constitui o alimento vital do nosso desejo, que não é só pranto nostálgico por uma plenitude inalcançável, mas uma potência, uma força, uma energia transformadora que transforma a falta em condição de abertura ao Outro rica de vida e de mundo, capaz de cumular, como escreve o poeta, o coração do homem.

A experiência da “falta” é uma experiência difícil de aceitar atualmente. Há sempre uma pretensão oposta à posse. Como se pode ir abrindo uma fresta? Como levá-la a sério?
Se, por exemplo, se faz referência à experiência da maternidade, a maternidade suficientemente boa não é uma experiência de posse ou de apropriação, não é um reforço do Eu. Ao contrário, ser mãe é abrir-se radicalmente à vinda do Outro. Neste sentido, a mãe justa – para referir-me ao episódio bíblico das duas mães do juízo do rei Salomão – é a que sabe renunciar à posse do filho para poder salvaguardar a sua vida. Não será este porventura um dos maiores dons da maternidade? Perder o filho que se gerou? Perder o próprio filho, deixá-lo ir, gozar da sua liberdade.

Que relação existe entre a experiência da falta e o desejo?
O desejo manifesta a falta que habita o ser humano, é dela a expressão mais pura. Como acontece aos apaixonados que se reencontram depois de um certo período de separação: não se pergunta ao amado o que foi que ele trouxe, não o aborda com uma pergunta voltada para o ter. A pergunta do amor é sempre a mesma: você teve saudades de mim? A minha ausência foi para você uma presença?

O senhor escreveu: “É a transcendência do desejo da mãe que torna possível a transcendência do desejo do filho”. O que é esta transcendência do desejo?
O desejo da mãe não é desejo de possuir ou de ter um filho. É, antes, uma abertura ao filho. A maternidade não é uma experiência de centramento, mas de descentramento.
Poderíamos dizer que o desejo da mãe não quer ter o filho, mas quer perdê-lo. É a alegria que uma mãe sente ao ver o seu fruto aprender a andar ou a falar, ao vê-lo entrar no mundo. Aquele filho que uma mãe trouxe no seu ventre e alimentou com o seu sangue nunca é dela, porque esse filho é sempre outra vida, vida outra, vida não sua, vida desconhecida. Neste sentido a transcendência do desejo da mãe, a sua abertura à vida outra do filho, funda a transcendência do desejo do filho, funda a sua vida como vida livre, como vida não sua.

A propósito de desejo, no seu livro fala de “um desejo que não seja anônimo”. O que é o desejo anônimo?
O cuidado materno é um cuidado que sabe dar lugar ao particular, à vida particular do filho. Não é nunca um cuidado válido para todos, anônimo justamente. É sempre cuidar de um enquanto um, do filho como filho único. Num tempo dominado pelo discurso do capitalista predomina a inércia absoluta, a ausência total de cuidado do particular, a generalização anônima, a despersonalização, a desumanização dos laços sociais. A mim interessam sempre os pontos de resistência e de antagonismo a esta deriva niilista do nosso tempo. Insisti recentemente no amor como fator de oposição ao discurso do capitalista. Mas também a lição mais elevada da maternidade, que é saber particularizar os cuidados, se manifesta como ponto de resistência ao conformismo crescente da inércia própria do nosso tempo.

O senhor tinha escrito num artigo no La Repubblica: “O que se herda se não se herda um Reino, se não se é filho de Rei? O que conta na herança é a transmissão do desejo de uma geração para a outra. É o modo como os nossos pais souberam viver sobre esta terra tentando dar um sentido à sua existência”. Ser herdeiro quer dizer, portanto, “homem livre”?
Ser filhos, como a palavra de Jesus realça, não é uma condição entre outras, mas define a vida humana no seu traço mais essencial. Somos todos filhos. E, como filhos, também temos a obrigação de ser herdeiros. A humanização da vida tem a ver com a ação, ou melhor, com o movimento de herdar. O que foi que fizemos com o que recebemos do Outro? Não há vida humana sem este movimento subjetivo de retomar aquilo que o Outro de quem procedemos fez de nós mesmos. A liberdade não indica ausência de condicionamentos, nunca é absoluta, mas define precisamente este movimento de retoma singular do destino que o Outro traçou na nuca das nossas vidas.

> No site meetingrimini.org está disponível o Programa do evento 2015 e suas atualizações (em italiano e inglês). Alguns encontros serão transmitidos ao vivo pelo site.

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