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OS FATOS

Vida plena de infinito

por Pigi Colognesi
16/09/2015 - “Ele sempre e somente falou daquilo que estava vivendo”. Passados cem anos de sua morte, um retrato do gênio francês à luz de uma palavra: experiência. Aquela que a modernidade “lavou, limpou, vestiu”, mas que para ele deve ser aceita assim como é
Péguy e Charlotte Baudouin no dia do casamento.
Péguy e Charlotte Baudouin no dia do casamento.

Charles Péguy tinha uma vida retraída e um pensamento genial. Vida retraída porque nela não há eventos particularmente chocantes ou aventuras extraordinárias. Nasce pobre, em 1873, em Orléans, órfão de pai com poucos meses de vida, aluno modelo e, por isso, encaminhado para os estudos clássicos. Admitido na mais prestigiosa universidade parisiense, adere a um socialismo não ideológico e muito atuante, depois se indispõe com os chefes do partido e, em 1900, funda uma revista com o banalíssimo e muito revolucionário objetivo de “dizer a verdade”. Durante catorze anos os Cahiers de La Quinzaine são o seu compromisso quotidiano. É o seu prazer, pois neles escrevem livremente muitos dos melhores autores da época e ele mesmo aí publica grande parte da sua copiosa produção. Porém, é também a sua cruz, pois as contas estão sempre apertadas e percebe o risco de não poder alimentar a esposa, os três filhos e a si próprio. Foram catorze anos de intermitentes doenças, de solidão crescente, mas sobretudo de reencontro da fé católica, abandonada na juventude. Até o fatídico 31 de julho de 1914, dia da mobilização geral para a guerra contra a Alemanha: Péguy, depois de confiar a família a amigos e reconciliar-se com todos aqueles com os quais tinha tido desavenças, parte para o fronte. Morre com uma bala na cabeça no primeiro dia da contraofensiva de Marne. Exatamente há cem anos.
Seu pensamento, no entanto, é genial. O adjetivo indica a elevação de uma voz completamente nova no coro da humanidade da época, uma voz inconfundível que conseguiu expressar como nenhum outro antes dele, um aspecto essencial do que é, justamente, ser homem.
Muitas são as melodias que poderíamos indicar para documentar a genialidade dessa voz; aqui seguimos aquela que se converge em torno da palavra “experiência”. Péguy não a usou com muita frequência, mas certamente essa é a palavra que se pode corretamente usar para descrever aspectos cruciais da sua obra. E da sua vida, dado que entre uma e outra há uma indivisível conexão. E já aí se pode falar de experiência, no sentido que Péguy sempre falou de algo que estava pessoalmente vivendo.
Péguy vive num contexto cultural dominado pelo progressismo positivista e pela otimista supervalorização da ciência; é o que chama de “mundo moderno”. É um mundo – escreve num texto de 1908 – que “tem sempre a palavra experiência na boca”. Mas há um engano: a experiência verdadeira, ao invés, está “toda plena de escórias, de barro e de resíduos”, ou seja, é o que é e por isso – em relação às nossas expectativas e a todas as nossas possibilidades de análise – é “rebelde”. Não só: é “toda plena de infinito”; portanto, a experiência autêntica traz consigo a abertura para uma dimensão que a supera.
Há aqui elementos suficientes para explicar muitos dados biográficos de Péguy. Tendo nascido pobre, lutou – aderindo a um socialismo livre de qualquer ideologia – pela construção da “cidade harmoniosa”. Tendo provas irrefutáveis da inocência de Dreyfus (um oficial de artilharia do exército francês), jogou-se na luta para defendê-lo, sem ceder às adulações da razão política. Desejando edificar concretamente uma sociedade justa, investiu o grande dote da esposa para abrir uma livraria que educasse a juventude para os valores da liberdade e da justiça. A partir das páginas da revista Cahiers, lutou bravamente contra a redução do pensamento aos “ismos” do esquema teórico. Convicto, desde o final de 1905, da iminência da guerra, preparou-se conscientemente para ela. Podemos resumir esse modo de proceder com uma frase de 1900: “Desde jovem sempre fui guiado por uma ideia simples, inteligente: precisamos começar a revolução do mundo pela revolução de nós mesmos”.

Por que o cristianismo? Essa absoluta fidelidade à experiência, tal como ela se coloca, sem maquiagem, sem procurar escapatórias redutivas, sem “bancar o esperto”, não é cômoda. Não o foi também para Péguy. Não tanto e não só porque o colocou em rota de colisão com o pensamento dominante – exceto um breve sucesso despertado, por razões equivocadas, pelo livro Mistério da caridade de Joana d´Arc –, a sua obra foi substancialmente ignorada durante a sua vida, mas sobretudo porque colocou a ele próprio diante do dilema final: aonde vamos aceitando a experiência? Será que ela não documenta, talvez, que tudo – a pessoa, a sociedade, os ideais e os amores – é envolvido por um inexorável envelhecimento? Não está aí para demonstrar que – segundo uma sua célebre definição – “tudo começa com a mística e termina com a política”? Nos anos de 1905 a 1910, Péguy atravessou longos períodos de esgotamento por excesso de trabalho, mas também pelo desconforto devido a muitos eventos pessoais (a incompreensão de muitos amigos da época), familiares (uma paixão que não quis seguir para permanecer fiel à família), e sociais (a radicalização da dialética política). A sua impiedosa análise do “mundo moderno” levou-o à conclusão de que ele “avilta” todos os melhores aspectos do humano. Frente a esse dado de experiência, onde encontrar um vislumbre de esperança, a quais profundidades descer para encontrar uma fonte de água fresca? A resposta a essas questões está no fato de que Péguy reencontrou a fé católica que lhe tinha sido ensinada na infância e que, depois, ele abandonou porque ela lhe pareceu mais um conteúdo de preceitos e de teorias do que uma experiência.
Mas por que o cristianismo, ou melhor, a pessoa mesma de Jesus, lhe pareceu uma adequada resposta à sua angústia, uma segura promessa de indestrutível novidade? Em 1910, Péguy fez, de modo pessoal, os exercícios espirituais da Quaresma, meditando sobre o relato da paixão de Cristo segundo o evangelho de Mateus e relatou-a em Véronique. Todos sabemos que Jesus, no jardim do Getsêmani, pediu a três discípulos que vigiassem com ele, mas estes adormeceram. Voltando da sua dilacerante oração ao Pai, Jesus diz aos amigos: “Vigiem e rezem. Porque o espírito está pronto, mas a carne é fraca”. Eis como Péguy comenta essas palavras: “Não se tratava absolutamente de um ensinamento da cátedra. Ele era um homem que falava a outros homens. Uma comunicação de experiência, pessoal, de uma triste experiência que acabara de fazer. Uma confissão (feita a eles! a nós!), uma triste confissão. Parecia dizer-lhes: vejam o que é a nossa carne, e a nossa tentação”.

O momento justo. Quero dizer que Péguy voltou a ser cristão porque descobriu que Deus decidiu compartilhar a experiência humana em tudo (a obediência aos pais, o trabalho manual, o sofrimento, as amizades, a traição, o medo diante da morte) e que, portanto, cada aspecto da nossa experiência é atravessado – “salvo”, se diz no catecismo – pela imprevisível graça de um Deus que “saiu do seu conforto” por nós. Desde então, cada instante da nossa experiência temporal ecoa o eterno que penetrou no tempo, cada detalhe da nossa vida “carnal” vibra com a infinitude de um Deus que se fez carne, a esperança combate continuamente (e vence) o envelhecimento e a couraça do “já feito”, que torna as almas “acostumadas”.
A partir daí fica claro, creio eu, o traço mais comovente das muitas páginas em que Péguy descreve episódios do Evangelho: a sua extraordinária capacidade de identificação. A Nossa Senhora que sobe ao Calvário é verdadeiramente uma mãe martirizada pelos sofrimentos infligidos ao filho, a Verônica que lhe enxuga o rosto é, de fato, uma jovem judia comum que teve a graça de estar ali “no momento certo”, o pai que espera o filho pródigo não é um abstrato símbolo da misericórdia, mas faz verdadeiramente a experiência de um pai ansioso pelo triste destino do filho.
Aliás – como Péguy escreve num trecho admirável do Mistério dos santos Inocentes – Deus mesmo é como um pai que ensina ao filho a nadar e que é tomado por um dilema: se sempre o segurar, o filho nunca aprenderá a nadar; se não acudi-lo no momento exato, ele corre o risco de se afogar. Raramente a relação entre graça e liberdade foi explicada tão claramente e em termos tão próximos, justamente, da experiência humana. Ou, para dizer com Von Balthasar, “nunca se falou de um modo tão cristão”.

(Artigo publicado na revista Passos n. 164, novembro de 2014)


Retorno à fé

Charles Péguy nasceu em 7 de janeiro de 1873, em Orléans. Na sua cidade, frequenta a escola obrigatória e, depois, o ensino médio. Em 1894, é admitido na École Normale; transfere-se para Paris. Participa da luta em favor de Dreyfus (um oficial de artilharia do exército francês injustamente acusado de traição), adere ao socialismo e em 1897 se casa. Em janeiro de 1900 sai o primeiro número da revista Cahiers de La Quinzaine; inicialmente, ela contém diversos artigos, em seguida torna-se monográfica, com textos sobretudo literários. Péguy aí publica todas as suas obras. O primeiro documento da reencontrada fé de Péguy remonta a março de 1907. Publicamente, o escritor manifesta o seu catolicismo com o Mistério da caridade de Joana d`Arc (1910), ao qual se seguirão outros dois.
Veem depois os anos das obras mais importantes: A nossa juventude (1910), o Laudet (1911), O dinheiro (1913), O painel de Nossa Senhora (descrição da peregrinação a Chartres; 1913), Eva (1913). Morre em batalha dia 5 de setembro de 1914. Ficam, porém, inéditas Véronique, Clio e a Nota conjunta sobre Descartes e a filosofia cartesiana, que o escritor estava escrevendo antes de partir para a guerra. Suas obras não têm edições traduzidas no Brasil.


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