Nem sempre é necessário e imprescindível referir-se à biografia de um artista para poder conhecer a obra dele. As biografias, às vezes, se tornam meros biografismos, quase um falatório declarado e manifesto, pelo qual, em vez de encontrar o autor, se prefere olhar para questões pessoais, privadas, que, mesmo importantes, não são relevantes para descobrir o humano que está por trás e dentro da obra artística. Talvez isso não seja o caso do autor de três Mistérios líricos e de uma releitura de Santa Joana d’Arc: Charles Péguy.
Péguy (1873-1914) nasceu numa família modesta. A pobreza digna e austera vivida durante a infância será sempre a lembrança da “piedade” de uma “obra bem feita”. Adulto, lembrará também que ver a mãe fazer cadeiras, com amor e dedicação, fazia-lhe pensar nas mãos e no coração de todo o povo francês que, durante e depois da Idade Média, se consagrou pela construção de catedrais.
Depois de formado, Péguy se reconhece anticlerical convicto e praticante, num processo, talvez, normal de quem frequenta os estudos universitários e se afasta gradativamente da fé recebida na família. Discípulo, na universidade, de Romain Rolland e, especialmente, do importante filósofo Henri Bergson (que influenciou dezenas de escritores e artistas, entre os quais Marcel Proust, sobre o tema da memória), Péguy adere também aos princípios do socialismo, que naquela época se afirmava sempre mais como uma posição política de interesse marcado para certos intelectuais.
Grupo de filosofia no ensino médio de Orléans (1890). Péguy é o último sentado, à direita.
Suas convicções socialistas nunca serão ideológicas, mas imbuídas daquela vida familiar, simples, digna e austera, daquela “piedade” de “obra bem feita”, inspirada pela educação materna. A visão do socialismo era, em larga medida, pessoal e quase etimológica: socialismo significava, para Péguy, viver numa perspectiva quase utópica, feita daquele sonho de liberdade, igualdade e fraternidade de que a França se fazia baluarte desde a Revolução e o Iluminismo. Um socialismo cristão permeado da ideia (também cristã) de fraternidade. Um socialismo que é também um grande ideal de juventude e que, em seu espírito visionário, será um dos pilares de sua conversão.
O retorno à fé católica se dá entre 1907 e 1908, quando decide empreender uma peregrinação, a pé, sozinho, até a Catedral de Chartres, para pedir a cura de seu segundogênito Pierre: 144 quilômetros em três dias. Péguy reconhece o milagre e fala de “tesouros de graça, uma superabundância de graça inconcebível”.
Péguy é injustamente etiquetado como místico. Amiúde, os intelectuais franceses foram hostis e adversos à proposta literária por causa de sua conversão ao catolicismo. É uma forma de não querer entender e profundar no complexo da personalidade do autor francês, formada, filosoficamente, na teoria bergsoniana da memória. Podemos dizer que toda a materialidade da escrita e da experiência de Péguy está na asserção de Bergson, quando falava que o “movente” (le mouvant), isto é, o que move o sujeito, é a liberdade de seu ser e o hábito da memória.
A liberdade do ser e o hábito da memória implicam sempre uma temporalidade, um caminho a ser entreprendido, aceito e custodiado. Por isso, Péguy nunca amou o termo “conversão”, que pareceria como uma recusa da vida passada, da própria memória histórica e pessoal, mas preferia adotar a expressão (ela também bergsoniana) de “aprofundamento do coração”.
Esse “aprofundamento” perpassa toda a trilogia dos Mistérios: O Mistério da caridade de Joana d’Arc (1910); O Pórtico do Mistério da segunda virtude (1911); e O Mistério dos Santos Inocentes (1912). Nos Mistérios Péguy aperfeiçoa um estilo poético que será a marca típica da sua escrita: versos livres, prosódia musical, períodos longos, com frases que se repetem, quase em forma hipnótica, jogos semânticos de palavras extremamente significativos, construções ousadas, ritmo muito próximo da salmodia.
Os Mistérios representam uma curiosa repescagem da linguagem e da concepção cultural da Idade Média. Reatando a história da cultura francesa ao teatro medieval (em seu gênero de mystery play, como eram denominados na Inglaterra), Péguy volta a dramatizar as meditações que uma vez tinham caráter didático e catequético. Mas desta vez não se tratava de “explicar” o que eram a fé, a esperança e a caridade (a que correspondem os três Mistérios péguyanos), mas de afundar as próprias raízes na cultura da Encarnação e da Redenção, do que foi perdendo-se ou esvaecendo-se. O crítico domínico Pie Duployé escreve em seu ensaio La religion de Péguy (1965) que, por exemplo, no primeiro Mistério, “não é revelada a história de Joana d’Arc (...) mas a sua oração”.
Apesar de se apresentar como fortemente documentado do ponto de vista historiográfico, Péguy não oferece em Joana d’Arc e, em geral, na releitura poética da história medieval, um poema histórico. Péguy se esforça em querer reconstituir a mentalidade da época e, especialmente, na figura de Joana d’Arc, aprofunda a consciência de uma figura controvertida, ciente da presença do mal (guerras, fome, enfermidades, violências humanas) e da responsabilidade pessoal frente ao mundo. Em outras palavras, como a liberdade do sujeito se move e qual habito de memória opera nele.
A história de Joana d’Arc, assim como a história de Madame Gervaise e Hauviette, não são um recurso hagiográfico ou moralizador, mas uma transfiguração poético-narrativa de uma vida interior, parafraseando uma expressão do próprio Péguy. Joana d’Arc, Madame Gervaise e Hauviette possuem uma consciência tão pouco avivada em nossos dias: são personagens que se interessaram pela Salvação. E esta salvação acontece com um Acontecimento. Com efeito, para Péguy, o Acontecimento é “a mecânica do eterno que entra no temporal”. Como escreverá Charles Moeller, para o escritor francês, Deus “não é um teorema abstrato e impessoal”, perdido na frieza de seu ser absoluto, mas é aquela fecundidade, aquela paternidade, aquela familiaridade que ecoava em seu socialismo utópico da juventude. Um Deus ao qual, como já notou Davide Rondoni, se fala chamando-o de “você”, um divino que “se adverte dentro de cada evento, familiar com todos, tangível em tudo”. Portanto, se o Eterno entrou no temporal, esse Eterno aceita também a condição do temporal, isto é, do humano. Deus começa, então, algo incrível, parece sublinhar Péguy: começa a esperar no sujeito, como esperou no humano de Joana d’Arc, de Madame Gervaise e de Hauviette. É por isso que o grande teólogo Hans Urs von Balthasar podia afirmar que na história da arte e da literatura, “nunca se falou tão cristãmente”, como na obra de Charles Péguy.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón