Para um escritor, o primeiro ato de realismo está em compreender o quanto é difícil ser realista, talvez mesmo – num certo sentido – impossível. O realismo não é um estilo. Não é uma estética. Não é um tom. Não é um comportamento que possamos escolher. Não é um pressuposto. Não é uma poética. Não existe uma literatura realista que se contraponha, por exemplo, a uma literatura fantástica, porque numa fábula, pode existir muito mais realismo do que num romance construído num registo maníaco, sob um controlo férreo dos dados reais.
Às vezes é um pequeno episódio, uma imagem, uma intuição simbólica que conferem a um livro uma espessura de verdadeiro realismo. Como em La casa in collina, de Pavese, quando o protagonista não consegue passar por cima do cadáver de um soldado fascista. Ali sentimos um contragolpe, a realidade tornou-se sinal. Ou como na mente prodigiosa de Danny Saunders, protagonista do romance mais famoso de Chaim Potok, The Chosen, cuja excepcional memória fotográfica é a metáfora de toda a história do povo judeu e da sua tragédia. Uma memória tão cruelmente exata não pode mentir.
O realismo é um movimento da alma, da liberdade. É o romper de uma medida com a qual procuramos negar o mundo e as coisas, fazendo depender a sua existência duma permissão nossa, duma conveniência nossa. Todos, sem excepção, fazemos isso: talvez afirmemos que “o método é imposto pelo objeto” sem ter, porém, em conta o sacrifício que estas palavras exigem. Só no sacrifício podemos compreender o seu significado: caso contrário, é apenas uma fórmulazinha dita de cor, uma abstracção como outra qualquer.
Escolhemos apresentar Chaim Potok para introduzir o capítulo sobre o realismo porque poucos outros escritores, no último meio século, conseguiram aceitar as suas difíceis consequências, quer na vida, quer no modo de construir as suas obras, como este grande judeu.
Nascido em Nova York em 1929 e tendo morrido na sua casa da Pensilvânia em 2002, Chaim Potok foi um dos maiores escritores do século XX. O alcance dos temas que trata é essencial para a compreensão de algumas páginas fundamentais da nossa história recente. Licenciado em literatura judaica e em literatura moderna, estudioso do Talmude, Potok foi também rabino e foi nessa qualidade que participou, entre 1955 e 1957, na guerra da Coreia. Desta experiência, nasceu um dos seus romances mais originais, I am the Clay.
Tive a honra de me encontrar com Chaim Potok três vezes: a primeira, em Milão, em 1996, num encontro organizado pelo Centro Cultural; a segunda dois anos depois, em Rimini, durante o Meeting – onde cantou Povera voce conosco; e a terceira em 2002 em Turim, poucos meses antes da sua morte, quando se encontrava já muito doente.
Nesta última ocasião falou-me da atração que o cristianismo sempre exerceu sobre ele, judeu praticante. Tudo começou com uma pequena história que lhe aconteceu em criança. Ao lado da loja do seu pai, na Broadway, encontrava-se a loja de um italiano falador que cantava a toda hora, sempre em plenos pulmões, árias de ópera e que estava sempre contente. Este falador era muito religioso: tinha um terço pendurado num gancho e tinha várias garrafinhas com água de Lourdes. Ele ficou tão fascinado por isto que, muitos anos depois, já muito doente, Potok disse-me estas palavras: “Sabes, acho que nunca saí daquela loja. Ainda lá estou”.
Aqui está ele, o contragolpe da realidade. Potok pagou um preço alto por esta sua atitude. Ele, que por muitos anos foi um dos candidatos mais referidos para o Nobel, nunca o ganhou, apesar de a juventude judaica americana ver nele não apenas um grande escritor, mas uma espécie de mestre, de autoridade espiritual.
DEUS E A HISTÓRIA. Todos os grandes escritores judeus do séc. XX enfrentaram com um empenho profundo o tema da relação entre Deus e a história. Para alguns deles (de Isaac B. Singer a Woody Allen, passando por Philip Roth), a história é simplesmente a negação de Deus, a confirmação da sua inexistência. Outros (por exemplo, Saul Bellow) reconhecem que a história não aniquilou completamente Deus ( e com ele, o homem) e encerram a sua obra sob o signo de uma abertura quase espantada.
Potok assume uma posição mais complexa – mais realista, precisamente, enquanto mais obstinadamente respeitosa de todos os fatores em jogo – em parte inspirada nas suas experiências pessoais. Ele, de fato, é rabino e estudioso da Escritura, mas é também um escritor “leigo”, perfeitamente inscrito na sua época (descobriu a sua vocação literária em jovem, lendo Joyce) e, na esteira dos interesses da sua mulher, que é psicóloga, estuda Freud a fundo.
Em The Chosen, um dos grandes best-sellers do pós-guerra (três milhões e meio de cópias vendidas em poucos meses só na América) encontramos os destinos cruzados de dois jovens: Reuven, o narrador, é filho dum jornalista estudioso do Talmude e a comunidade à qual pertence está já relativamente laicizada, é uma daquelas que o pai de Danny – rabino chassídico super-ortodoxo – considera já estarem perdidas.
Estamos no fim da Guerra. A relação entre Reuven e Danny tem início durante um encontro desportivo, quando surge uma disputa entre os membros das duas comunidades e Danny, furioso, atira uma bola a Reuven partindo-lhe os óculos. Um estilhaço vai parar ao olho do rapaz que é levado para o hospital. Dali, imprevisivelmente, nasce uma amizade profunda que será posta à prova por muitos acontecimentos pessoais e históricos: entre eles, a notícia assustadora da descoberta dos campos de extermínio nazis.
O velho rabino chega a proibir Danny de ver Reuven quando, ao ler um artigo do pai deste, descobre que também ele é favorável à fundação de um Estado de Israel. Para um chassídico, nenhuma iniciativa humana pode subverter a ordem divina: só quando Yhavé quiser, no fim dos tempos, será possível estabelecer o Seu reino na terra.
Mas a shoah mudou muitas coisas. Noutros livros de Potok, volta-se a este assunto, como no romance autobiográfico In the begginning ou na outra grande obra-prima de Potok, My name is Asher Lev. Durante a guerra, os judeus polacos (dos quais Potok é descendente) eram vendidos pelos exércitos polaco e russo aos alemães. A humilhação de ser reduzido a carne para o matadouro determinou a revolta de muitos soldados judeus, que decidiram, de uma vez por todas, que a história devia ser enfrentada com o método da história: a força e, logo, a política e as armas.
Esta forma de realismo (também aqui se poderia dizer: bem, o método foi imposto pelo objeto) não é muito diferente daquela à qual assiste o jovem nova-iorquino Asher Lev, cujo pai é encarregado pelo rabino – estamos no início dos anos cinquenta – de comprar à Rússia de Estaline os judeus para os levar para a América. É o realismo dos negócios, do business, da política durante a Guerra Fria. O dinheiro e o poder estão a tornar-se, em suma, duas personagens demasiado importantes: vai ser preciso enfrentar as consequências disso. Mas para muitos, enfrentar as consequências significa apenas adaptar-se, seguir a onda. É isto o realismo?
Voltando a Danny, os desígnios do seu pai, piíssimo defensor da tradição judaica, serão despedaçados com a notícia, por um lado, do nascimento do Estado de Israel e, por outro, com a decisão de Danny, por ele destinado à carreira de rabino, de estudar Freud e de exercer a profissão de psicólogo.
FIM DA VIAGEM. Uma tradição conservada imutável durante dois mil anos – a da comunidade judaica da diáspora, reunida em torno do rabino e do beth din, o tribunal no qual a comunidade dirimia todas as controvérsias – chega, com o ingresso (trágico) na modernidade, ao fim da sua viagem. O século XX tornou impossível aquilo que vinte séculos, muitas vezes terríveis, não tinham conseguido eliminar.
O que determinou a ruína não foram apenas o pogrom e nem sequer Auschwitz, ou seja, tragédias de tal forma hediondas, mas isoladas, imputáveis à loucura criminosa ou à ignorância. Há uma rendição de muitos filhos de Abraão às presumíveis leis da história (dinheiro, poder), uma renúncia ao privilégio, à primogenitura, à aliança que Yhavé estabeleceu para sempre com o seu povo, para se tornarem como todos os outros: quase um mergulho voluntário no nada.
Danny, o eleito – eleito pelo pai para se tornar rabino, eleito perante o mundo graças aos seus dotes prodigiosos – não renuncia á fé antiga, mas escolhe conservá-la enfrentando diretamente o tormento da dissidência: ele, que não pode fingir que esqueceu (é este o sentido da sua memória implacável), decide fazer o seu jogo na direcção de Freud, procurando – talvez – salvar, na confusão que nos domina, o Pai que permanece dentro de cada um de nós. É isto o realismo para Potok: não cavalgar o tigre, mas aceitar o drama com um “sim” doloroso mas sem condições.
A CRUCIFICAÇÃO. Também na experiência ainda mais dramática de My name is Asher Lev o tema da paternidade se cruza com o de uma condição humana em que Deus parece oferecer aos seus filhos indicações contraditórias. Asher Lev é um jovem filho duma família chassídica que descobre desde a mais tenra idade que tem um propensão excepcional para a arte figurativa. Parece predestinado a tornar-se um grande artista. O chassidismo, porém, condena a arte, considerando-a uma tentativa indevida do homem de macaquear a criação de Deus. O pai – por entre uma viagem à Europa e outra – rotula a sua presumível vocação como uma parvoíce.
Mas a mãe de Asher Lev é uma mulher diferente. Fiel ao seu papel de mulher, é no entanto uma mulher de alma sensível, melancólica, profundamente diferente do marido. Entre os dois cônjuges não parecer existir verdadeiro amor, mas antes fidelidade e um pacto silencioso. Asher Lev toma pouco a pouco conhecimento do tormento que a mãe trás encerrado em si, um tormento que prolonga nela, depois da guerra, sem fim, os horrores da shoah. O homem com quem casou é o irmão do homem que ela amava, e que foi morto pelos alemães. Foi um ato de lealdade para com o irmão morto que levou o pai de Asher Lev a tomar aquela mulher como esposa. Mas isso não foi suficiente para a transportar para uma vida nova.
Depois, um dia, Asher Lev desenha a mãe crucificada: uma obra juvenil, mas que á já a premissa daquele que será um dos temas fundamentais na obra adulta do artista. Este gesto escandaliza a comunidade chassídica: para o povo de Abraão, não tiveram todos os males início precisamente com a crucificação daquele Nazareno?
Mas Asher Lev, que a seguir viajará para a Europa ligando-se a um mestre judeu não praticante, não pode fingir que aquele é um capricho seu: o crucifixo (que ele usa simplesmente como figura, sem referência explícita ao cristianismo) é a figura, a forma adequada para contar a tragédia sem fim da mãe, que conserva viva dentro de si, como uma chama, a memória de quem amou e já não existe.
Precisamente porque a shoah não foi apenas uma tragédia coletiva, mas sim a tragédia de tantos “eus” e das suas memórias infinitas, a crucificação – um corpo, o corpo de Deus! preso ao lenho por pregos – é a única imagem concreta, adequada para contar um tormento que nada tem de genérico. Foi assim que a história matou Deus, e a única inconfessável (mas também, a única razoável) esperança é que ele tenha verdadeiramente ressuscitado.
Este romance, no qual a reflexão de Potok sobre a história atinge o ponto mais profundo, trouxe glória e problemas ao escritor, a quem vários membros da comunidade judaica nova-iorquina não o perdoaram por ter escolhido, como imagem adequada da tragédia judaica, um símbolo cristão. Tanto que no romance The gift of Asher Lev – que é a continuação do anterior – embora muito belo, a dissidência deste artista da extirpe chassídica é reabsorvido por uma reconciliação que mais parece um pacto de não beligerância: o rabino percebeu que a arte é para ele uma necessidade, e respeita-o: mas o velho escândalo já não existe. Agora, Asher Lev é apenas um artista, um de muitos artistas de sucesso.
Há na obra de Potok uma fé profunda que forma um todo com a sua confiança na imponência da realidade, mesmo quando esta parece ir contra a fé. A aceitação corajosa desta condição dramática é, entre os muitos méritos deste enorme escritor, talvez o maior. Por isso, e não apenas porque insere o cristianismo no coração do drama judeu, Chaim Potok não pode deixar de ser um grande amigo. Foi-o em vida, continua a sê-lo hoje através da sua obra.
* Os livros de Chaim Potok ainda não foram traduzidos para o português.
A VERDADE COM “V” MAIÚSCULO
Herman Harold Potok nasceu em Nova York, em 17 de fevereiro de 1929. Licenciou-se no Jewish Theological Seminary em 1954. Nos anos 55-57 vai para a Coreia, como rabino e capelão militar. Em 1965 licencia-se em Filosofia na Universidade da Pensilvânia. A partir desse ano, é o redator-chefe da Jewish Publication Society of America. Com a publicação de The Chosen, em 1967, entra oficialmente no cenário literário americano. "Uma das razões que me levaram a contar histórias é a necessidade de dizer a Verdade, com V maiúsculo. [Para o fazer] é preciso uma grande, grande paixão pelo ser humano". Nas décadas de 1980 e 1990 ensina na Universidade da Pensilvânia. Entre as suas obras, encontram-se The Promise (1969, continuação de The Chosen), My name is Asher Lev (1972) e a continuação, The gift of Asher Lev (1990), In the Beginning (1975), Davita’s Harp (1985), I am Clay (1992). Morreu no dia 23 de julho de 2002 em Filadélfia.
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