A época em que o Livro da Vida de Santa Teresa de Jesus foi escrito e publicado -- o século XVI europeu -- parece, hoje, pertencer a um outro mundo. A cristandade, até então unida na Europa Ocidental, acabava de sofrer sua mais grave ruptura. Quando Lutero deu início à Reforma protestante na Alemanha, Teresa de Ahumada –a futura religiosa e santa -- era uma menina de dois anos. Enquanto se desenrolavam as primeiras guerras entre católicos e protestantes na Europa, a Reforma se dividia em grupos cada vez mais intolerantes entre si, e a Igreja de Roma lançava a Contra-Reforma, Teresa e um irmão, ainda crianças, liam vidas de santos e sonhavam em ir pregar Jesus Cristo aos mouros e morrer mártires. Ainda imatura, a pequena Teresa sonhava pregar aos mouros não por amor a eles ou para que sua pregação produzisse frutos entre os muçulmanos. Sonhava, sim, em se tornar mártir, diz ela no Livro da Vida, não tanto por amor a Deus, mas por achar que era um jeito rápido e fácil de ir gozar das delícias do céu.
Teresa cresceu e amadureceu sua fé nesse ambiente crispado. No Livro da Vida, ela conta sua infância e primeira juventude, conta como viveu em mosteiros, primeiro como leiga, depois como noviça e freira. Finalmente ela narra as lutas que enfrentou para convencer as autoridades da igreja espanhola de seu tempo de que não era uma mística impostora, como muitas que a Inquisição vinha desmascarando. E que seu plano de restaurar o rigor da regra o Carmelo, abrandada já desde o final da Idade Média, não era uma loucura.
Esse mundo de cristãos prontos a derramar o sangue por sua fé -- como mártires ou na guerra --, ansiosos para ir para o céu, e dispostos a viver sua vocação religiosa com tal radicalismo que o simples contato com a família ou com amigas é visto como pecado, pode causar estranhamento. Santa Teresa é uma personagem enormemente conhecida e uma santa venerada, mas seu livro poderia parecer definitivamente fechado para os homens e mulheres contemporâneos.
Parecem muito mais compreensíveis para o mundo contemporâneo -- ainda que mais terríveis e catastróficas -- as guerras por domínio puro e simples, como a Primeira Guerra Mundial, ou ideológicas, como a Segunda. Parece mais normal que alguém busque respostas e um meio de vida através da Universidade, em vez de uma ordem religiosa.
Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, uma jovem judia agnóstica alemã, Edith Stein, teve uma experiência definitiva. Aluna de filosofia de um dos mais prestigiosos mestres europeus da época, Edmundo Husserl, Edith achou na casa de uma amiga em que estava hospedada, o Livro da Vida. Passou a noite em claro lendo o livro. De manhã começou a procurar os meios de se tornar católica. Batizada, abandonou o meio universitário, tornou-e freira carmelita e adotou um nome que homenageava a santa espanhola. Em 1943, Teresa Benedita da Cruz foi martirizada em Auschwitz. Em 1998, o papa João Paulo II canonizou-a, atestando oficialmente em nome da Igreja que ela já “goza das delícias do céu”, como diria Santa Teresa de Ávila .
O livro que produziu um tão doce fruto não é uma obra de catequese, nem de apologética, como se poderia esperar de um livro que tivesse causado a conversão de uma judia -- portanto alguém que ignorava o conteúdo da fé católica -- nem mesmo de teologia, como seria de se esperar no caso de uma filósofa. O Livro da Vida não é nem mesmo uma autobiografia, embora conte partes da vida de Santa Teresa. Ela não o escreveu por vontade própria. O manuscrito que entregou a seus confessores foi escrito para dissipar as desconfianças que a Inquisição poderia ter em relação a suas experiências místicas. Em uma carta, ele diz que deu ao seu escrito o nome de As Misericóridas de Deus, embora o manuscrito não contivesse nenhum título.
Santa Teresa escreve sob tensão. Na época, ainda não tinha levado a cabo sua reforma da ordem carmelita. Apenas o primeiro de seus mosteiros reformados, o de São José de Ávila, estava sendo fundado ao mesmo tempo em que ela escrevia. Religiosa desde os 20, Santa Teresa já tinha quase 50 quando começou a ter as experiências que descreve no livro e que formam sua parte essencial. São experiências de contato direto com Deus que Santa Teresa conta no Livro da Vida. Às vezes essas experiências tomam a forma de visões. Às vezes até de objetos que recebe -- um crucifixo, um rosário -- que só ela pode ver. O mais profundo contato de Santa Teresa com Deus, no entanto, é sem forma. É uma pura experiência de união íntima com Deus em que o tempo e o espaço deixam de existir para a santa. São a mais elevada “maneira de oração”, como ela diz.
O Livro da Vida é um texto que tenta, assim, dizer o indizível. É claro que se pode pôr o livro de Santa Teresa no contexto em que foi escrito. E não faltam comentadores para ver no Livro da Vida um típico exemplar da Contra-Reforma católica com sua ênfase na reforma radical do clero e reafirmação da autoridade do papa; ou, ao contrário, uma das primeiras obras do humanismo cristão, ressaltando a intimidade espiritual com Deus mais do que a prática religiosa. Há quem veja Santa Teresa como a primeira feminista, ou uma precursora da Teologia da Libertação, ou o contrário de cada uma dessas interpretações. Basta ler, porém, sem nenhuma agenda, o Livro da Vida, para se deixar guiar à melhor interpretação: a da própria Santa Teresa. O que interessa a ela não é retratar o catolicismo espanhol do século XVI, e as tensões que alumbrados, os falsos místicos tão temidos pela Inquisição, cristãos-novos e cristãos velhos, erasmismo e a expansão colonial espanhola acarretam. Ainda que tudo isso deixe sua marca na obra. A Santa Teresa importa narrar como ela vai sendo arancada por Deus de sua vida normal, antes e depois de se tornar religiosa, para ser levada a estados cada vez mais elevados de oração. Essa é uma experiência direta com o Absoluto e, assim, livre de toda contingência histórica.
Santa Teresa ressalta várias vezes ao longo de todo o livro que aquilo que experimenta são dádivas de Deus. Presentes absolutamente gratuitos. Ela não descobriu ou desenvolveu nenhum método de oração que possa ser usado por outros fiéis e possa produzir resultados semelhantes ao que ela experimentou. Não há mérito algum dela no que lhe acontece. A expressão mais radical disso é a dádiva que ela recebe de ter uma visão do lugar no inferno que estaria destinado a ela, não fosse a graça de Deus tê-la livrado da condenação.
Seria um erro ler Santa Teresa como se a narração de suas mais íntimas experiências não fossem mais do que o produto de uma época. O livro, em sua essência, continuaria fechado para o mundo de hoje. Erro simétrico, e não menos pernicioso, seria ler Santa Teresa como se só a essência de sua mensagem -- sua união íntima com Deus, por graça de Deus -- não fosse fruto de sua época, e o resto, seu radicalismo na consideração do pecado, sua visão do inferno, sua ânsia por chegar à vida eterna, o rigor da penitência que propõe e que elogia em alguém como São Pedro de Alcântara, devesse ser deixado no passado da Espanha do século XVI. Santa Teresa, no Livro da Vida, não fala de uma época distante, nem de outro mundo. Fala, sim, de uma dimensão que sempre foi peregrina no mundo, nunca à vontade e nunca contida em nenhuma época. Santa Teresa fala das Misericórdias de Deus.
Livro da Vida
Santa Teresa D’Avila
Tradução: Marcelo Musa Cavallari
Editora Penguin
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