“Depois a chuva parou e a noite ficou límpida. A lua, acabada de nascer, dançava sobre os fios da luz como uma nota musical prateada acesa na escuridão sem fim”.
Só um escritor extraordinário pode conceber uma frase como esta. Não tanto pela metáfora da nota musical – isso são os “instrumentos do ofício” – e nem sequer pela “escuridão sem fim” – opinião pessoal do autor – mas sim por aquela nota ali lançada como que por acaso: “a lua acabada de nascer dançava sobre os fios da luz”.
Tinha acabado de chover e os fios da luz estão molhados. O protagonista do romance olha pela janela de um carro. A lua não se vê, porque está do outro lado. Só se vê o seu reflexo nos fios elétricos. Primeiro não se via, agora vê-se: surgiu a lua.
É apenas um pequeno, mas significativo exemplo da grandeza do escritor Cormac McCarthy.
Nove décimos do trabalho de um narrador consistem no trabalho de preparar o duro terreno da experiência para transformá-la em palavra. Qualquer que seja o estilo (porque o caminho que a realidade percorre para se fazer palavra obedece a uma dinâmica própria, à qual damos o nome de “invenção”) o problema é sempre o mesmo: a densidade da experiência que a palavra consegue apreender. A literatura é uma questão de densidade.
Nisto, nenhum escritor no mundo é comparável a McCarthy. A capacidade de ver aquilo que os outros não vêem, de prever aquilo que os outros não imaginam, é a primeira surpresa para alguns leitores. A cada linha, embatemos em coisas que nos aconteceram mil vezes e às quais não tínhamos prestado atenção, ou para as quais não tínhamos encontrado as palavras para descrever.
Em crítica literária, a este propósito, fala-se de “visionariedade”, que é algo para além da fantasia. É a visionariedade de Leopardi (com quem McCathy tem vários pontos em comum) quando diz “Todo o ar já escurece, /e o azul volta a ser sereno, e as sombras baixam /das montanhas e dos telhados, / até o branqueamento da recente lua”. Quanta atenção à cor do céu, ao ir e vir das sombras!
A excepcionalidade de um escritor começa aqui – não da sua visão mundo, não daquilo que pensa, mas da maneira como trata as coisas (da moralidade no conhecer, diria Dom Giussani em O Senso Religioso): porque é ali que toma corpo o seu drama.
Fora algumas obras, aliás importantíssimas, – recordamos a obra-prima Meridiano de sangue (Ed. Alfaguara Brasil, Rio de Janeiro, 2009), o mais violento dos livros de McCarthy, ambientado em plena epopeia do Faroeste, e o fantástico-científico, visionário, A estrada (Ed. Alfaguara Brasil, Rio de Janeiro, 2007, que muitos leitores bem conhecem – a maior parte das obras de McCarthy desenrola-se numa época muito precisa, entre a segunda Guerra Mundial e o início da década de 1950, quando o exército americano reconquista os “ranchos”, pondo fim à epopeia do Faroeste.
FOME DE MISTÉRIO. Os cowboys, guardas dos animais, têm que encontrar outro trabalho (também se fala disto no último filme dos irmãos Coen, Indomável) e acabam, na sua maioria, a fazer de figurantes nos filmes western, até porque já são incapazes de se reinserirem na sociedade americana.
Enquanto os últimos guardadores de gado refletem sobre o seu obscuro amanhã, a paisagem do Oeste povoa-se de comboios, auto-estradas, automóveis, pick-ups. E neste momento histórico preciso, McCarthy lê uma página decisiva da história americana, uma passagem de época do Grande Sonho Americano (que tinha unificado o país) para algo de completamente diferente, uma espécie de desagregação – entre Estados, comunidades, estilos de vida estranhos uns aos outros – juntos apenas pelo adesivo precário do exército e, depois, pelo cinema e pela televisão.
Na célebre Border Trilogy (triologia da fronteira) (All the pretty horses, The crossing e Cities of the plain), o escritor acompanha a vida de alguns jovens que se revoltam com a mudança e procuram lugares e maneiras de conservar o seu velho estilo de vida: têm catorze, dezesseis anos, mas a sua vida já está ligada aos calos e à vida selvagem para sempre. Um sentimento trágico do Destino acompanha as suas vidas solitárias e poéticas, gerando amor, violência e morte.
“Já se foram todos embora, agora. Fugidos, bandidos na morte ou no exílio, perdidos, arruinados. Sol e vento ainda percorrem aquela terra, para queimar e sacudir as árvores, a erva. Daquela gente, não resta nenhuma encarnação, nenhum descendente, nenhum traço. Nos lábios da estirpe estrangeira que agora vive naqueles locais, os seus nomes são mito, lenda, pó” (O guarda do pomar)
Numa entrevista, McCarthy declarou que não gostava de escritores como Proust e Henry James, que não falavam da vida e da morte.
Mas a natureza em McCarthy está povoada de sinais, e estes sinais assumem muitas vezes a forma de alarmes, de advertências.
“Viravam o volante na estadual e mergulhavam na obscuridade, fustigando com os faróis os cimos das árvores que emergiam bruscamente da borda do fosso” (O guarda do pomar)
“Fumava um cigarro atrás do outro, fechando o pára-brisas para acender um novo com a beata do velho e estudando no clarão das brasas ligadas a sua própria cara que emergia da sombra e se refletia, em tons laranja, no vidro” (idem)
Os pormenores queimam a página e os olhos dos leitores porque são sinais precisos, que não podem ser olhados de forma ligeira.
A paisagem do Oeste tinge-se de tintas bíblicas, os desertos do Texas e os desertos de Jericó sobrepõem-se, e em todas as aventuras dos protagonistas, mesmo nas mais cruas, desenvolve-se – muitas vezes explicitamente – uma trama sapiencial, quase como se todas as histórias humanas não fossem mais do que reedições sempre variadas, sempre surpreendentes, da única história que as inclui a todas: aquela que começa com Abraão, Isaac, Jacó e termina com o Juízo Universal.
Os jovens que povoam os livros de McCarthy são pessoas que não se resignam a ver no mundo só aquilo que há nele. Mas o horror, a morte, o diabo esperam por estes homens. A nova América expulsará todas as formas de mistério.
Ouçam como fala o comilão que irá matar John Grady Cole (o protagonista da triologia, apaixonado por uma jovem prostituta): “Talvez na hora da sua morte, o pretendente compreenda que foi a sua fome de mistério que o destruiu (…). Isto é o que te trouxe aqui, o que vos trará sempre a todos aqui. As pessoas como tu não toleram a ideia de que o mundo é plano. Que não contenha nada fora daquilo que se vê (…) o vosso mundo vacila sobre um labirinto mudo de perguntas. E nós vamos devorar-vos, meu amigo. A vocês e a todo o vosso pálido império”.
O MAL REGULAR. Nas suas obras mais recentes, McCarthy deu mais um passo na sua reflexão. Em outra obra-prima, Onde os velhos não têm vez, o grande escritor dá com precisão a sua própria visão do homem e da história. Aqui os protagonistas são três: um pequeno delinquente, um xerife e um assassino assustador, vindo de fora, cujo nome – Chigurh – já de si não tem nada de humano, e que raciocina com uma medida que o xerife não conhece.
Até aqui, a relação entre criminosos e justiça fundava-se numa base antropológica comum: os mesmos valores (transgredidos por uns, salvaguardados por outros), a mesma forma de raciocinar. Enquanto a ideia de comunidade regular a convivência, a América pode continuar a viver. De resto, foi precisamente estudando a comunidade das aldeias de New England que Alexis de Tocqueville produziu A democracia na América.
A cisão da comunidade é como a cisão do átomo: o Homem Americano desintegra-se, e ao seu lugar chega um estrangeiro, um ser sem raízes nem memória, que já não sabe distinguir amigos e inimigos. Assim o Mal, quando se apresenta, não tem nenhum rosto: o xerife não tem os instrumentos para capturar um assassino como Chigurh, que mata com uma venda nos olhos e não deixa vivos aqueles que o reconhecem, e por isso não existe nenhuma identificação sua. No final há quem o reconheça, é verdade, mas aqui o horror salta aos olhos: a sua figura – nem alto nem baixo, nem magro nem gordo, rosto regular, tudo regular – é tão normal, tão vulgar, que não é possível descrevê-lo.
O CORAÇÃO É O PRIMEIRO DESAFIO. O livro termina com a demissão do xerife e com uma reflexão comovente sobre aquilo que falta aos homens de hoje para poderem enfrentar de forma credível o desafio do bem, da justiça, da verdade (nós diríamos: o desafio do coração, porque o nosso coração é o primeiro desafio):
“Quando saía pela porta dos fundos da casa, num dos lados encontrava-se um bebedouro de pedra no meio das ervas. Havia um tubo de zinco que vinha do teto e o bebedouro estava quase sempre cheio, e lembro-me que uma vez parei ali, acocorei-me, olhei para ele e pus-me a pensar. Não sei há quanto tempo ali estava. Cem anos. Duzentos. Na pedra, viam-se as marcas do cinzel. Tinha sido escavado na pedra dura, tinha quase dois metros de comprimento, mais ou menos metade da largura e outro tanto de profundidade. Escavado na pedra a golpes de cinzel. E pus-me a pensar no homem que o tinha construído. Aquela terra nunca tinha tido períodos de paz especialmente longos, tanto quanto eu sabia. Depois, li alguns livros de história e soube que períodos de paz, propriamente dita, não houve mesmo nenhum. Mas aquele homem tinha-se posto ali com um maço e um cinzel e tinha feito um bebedouro de pedra que podia durar dez mil anos. E por quê? Em que é que aquela pessoa acreditava? Com certeza que não acreditava que nada iria mudar. Até se podia pensar isso. Mas na minha opinião, não se pode ser tão ingênuo. Refleti muito sobre isso. Continuei a refletir ainda depois de ter vindo embora, quando a casa já estava reduzida a um monte de destroços. E digo-vos, na minha opinião, aquele bebedouro ainda está lá. Era preciso muito mais para o tirar dali, asseguro-vos. E então penso naquela pessoa sentada ali, com o maço e o cinzel, talvez por algumas horas depois do jantar, não sei. E devo dizer que a única coisa que me ocorre pensar é que aquilo tinha uma espécie de promessa dentro do coração. E eu não tenho, de certeza, a intenção de me pôr a construir um bebedouro de pedra. Mas gostaria de ser capaz de fazer uma promessa daquelas. É a coisa de que mais gostaria”.
Ao homem de hoje falta aquela promessa, aquela capacidade de olhar para o tempo, para as vicissitudes, para a sorte e o azar, para a guerra, tendo nos olhos alguma coisa mais, aquela coisa capaz de tornar a vida bela e possível de ser vivida em qualquer situação.
Apesar disso, o homem não está morto. De forma realista, McCarthy diz-nos que a luta entre o bem e o mal se desenrola, neste momento, a favor do mal. Isto não quer dizer que o homem tenha sido aniquilado. Cultura, poder, riqueza, desastre educativo não têm a última palavra. A obra de Cormac McCarthy tem a força deste último grito. Como em A estrada, onde aquele que poderia ser o último homem do mundo se vai embora com o seu filho, sem nenhuma esperança de salvação depois do mundo ter sido completamente destruído. E no entanto, vão os dois para uma paisagem alucinante, vivendo um dia de cada vez. O que é que os move? A esperança de conseguirem? Ou aquela promessa maior?
É uma pergunta à qual todos devemos responder pessoalmente.
É tudo uma questão de liberdade. O heroísmo é isto, e por isso não há um dia que seja diferente dos outros.
O filho está diante do pai moribundo: “”Qual foi a coisa mais corajosa que já fizeste?”. O homem cuspiu um grumo de sangue e cuspo para a rua: “Levantar-me esta manhã”, disse” (A estrada).
Mas, se em vez de ser a última manhã da vida daquele homem, fosse uma manhã normal, uma como tantas outras, o discurso podia ser repetido, igualzinho. Qual é a força que permite a um homem levantar-se de manhã como homem? Este é o problema, isto é o ser ou não ser. E nós nos jogamos todas as manhãs sobre esta coisa.
Escreve McCarthy:
“As pessoas queixam-se sempre das coisas más que lhes acontecem sem que as tenham merecido, mas nunca falam das coisas belas. E do que fizeram para as merecerem. Eu não me lembro de alguma vez ter dado a Nosso Senhor nenhum motivo especial para Ele me sorrir. E, no entanto, ele sorriu-me” (Onde os velhos não têm vez).
UM “SOCIÁVEL SOLITÁRIO”
Terceiro de seis filhos, Cormac McCarthy nasceu em Providence (EUA) no dia 20 de julho de 1933, em uma família irlandesa (“Uma daquelas famílias em não se pode colocar nada em dúvida sobre o cristianismo”). Cresce no Tennessee, onde frequenta e abandona por duas vezes a universidade. Alista-se na U.S. Air Force, onde fica quatro anos, e depois vai trabalhar numa oficina de automóveis de Chicago. Depois de uma longa viagem pela Europa, regressa aos Estados Unidos. Hoje em dia vive no Texas, em El Paso, com a sua (terceira) mulher e o filho John. “Tenho uma grande simpatia pela visão espiritual da existência. No sentido de ser uma pessoa melhor. É muito mais importante ser-se bom do que ser-se inteligente. É tudo o que vos posso oferecer”, diz numa das suas (raras) entrevistas. Comparado pela crítica a Dostoievski e a Faulkner, define-se como um “sociável solitário”. A sua obra Onde os velhos não têm vez (Ed. Alfaguara Brasil, Rio de Janeiro, 2006) foi levada ao cinema pelos irmãos Coen; e a sua obra A estrada (Ed. Alfaguara Brasil, Rio de Janeiro, 2007) ganhou o Pulitzer e também se tornou um filme.
Credits /
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