Numa obra de Mario Luzi escrita no fim do milênio encontra-se uma figura atenta à luz do dia que transcorre sobre o Val d’Orcia. Diz:
(...)
É longo, mas
por ela passa,
acaba
esvai-se
o dia humano
e não humano,
foge-lhe da cava
dos seus pequenos montes,
eclipsa-se por entre as rugas
dos seus áridos cumes,
esvai-se o dia
e o homem
e a vida que neles existe
esvai-se
tendo e não tendo
sabido que parte teve...
mas teve – ela sabe-o –. Teve
e isto a faz chorar
por vezes de graça e de letícia.
A vida esvai-se entre consciência e não consciência (“sabendo e não sabendo”) do seu significado, da sua “parte”. O tempo, como o vale, é o cenário desta existência entre certeza e incerteza do Senso das coisas e da vida. Mas – conclui – ele sabe que um significado foi dado. Ele quem? O próprio vale, a vida? A poesia?
As perguntas que povoam a vida de um homem são o coração da vida. Ainda que não expressas ou, pior ainda, reprimidas, as perguntas que tentam evidenciar qual foi a minha, a nossa parte neste pequeno vale do tempo (ou vale de lágrimas, como canta o Salve Regina composto por Hermano, o Coxo) são o ponto mais incandescente de nós. O pranto final “de graça e letícia” é o sinal supremo de um sentimento de desproporção e de gratidão. Possui o viver de um homem uma parte, um Senso último – ele por vezes o sabe, por vezes lhe foge. A vida, que na poesia tem voz e no vale se manifesta, “sabe-o”, preserva-o.
Luzi contou-me que antes de escrever este maravilhoso, árduo e musicalíssimo livro (Viaggio terrestre e celeste di Simone Martini) pensara que não voltaria a publicar mais nada. Era já muito velho, findava o século e o milênio, pensava já ter dado tudo quanto podia. Depois, disse-me, tinha-lhe aparecido em sonhos Simone Martini, o insigne pintor do século XIV, e pareceu-lhe que essa e outras figuras pediam a ele, exímio poeta, que narrasse uma estranha viagem nunca realizada, o regresso da corte de Avignon à sua (de Mário e de Simone) cidade de Siena. Daqui nasceu um livro prodigioso de poesia, de pensamentos luminosos e sombrios sobre a existência, sobre a arte, sobre os movimentos do espírito e da história. E no fim do segundo milênio, um poeta conseguiu usar novamente aquele termo, letícia, que entretecia a consciência de Francisco, santo e um dos primeiros poetas da nossa Itália que, com o seu Cântico, fixara na experiência do mundo, nas coisas da vida, o tema, o teatro, o drama de toda a autêntica poesia.
VOZ QUE ANIMA. Luzi era assim: extremista e transgressor – revestido de bons modos e deferência – em relação às correntes céticas e niilistas dominantes na cultura e na poesia, suas contemporâneas. “Observei Campana, Rebora”, dizia-nos, portanto figuras da poesia em que visão poética e experiência do mundo se fundem num único “ardor”. E, como Dante, entendeu a poesia como uma viagem que nos aproxima do mistério do ser.
Foi leitor, e encorajador, e prefaciador dos meus primeiros versos (e dos de outros novos poetas), foi companheiro de viagens, de conferências, de leituras. De discussões e de descobertas. Foi mestre profundo e humilde. Agora é voz que atrai, que orienta. Que anima.
Mario Luzi foi um dos mestres da poesia e do pensamento do século XX italiano. A sua voz significou para muitos a possibilidade de uma inquieta, atenta e abertíssima interrogação da vida.
A sua longa história de poesia (o primeiro livro foi publicado em 1935, La barca, e o último no ano passado, póstumo, após a sua morte ocorrida em 2005) mostrou como a mens do homem contemporâneo pode encarar o devir do mundo sem ceder a um triste ceticismo ou ao preconceito ideológico, males tão generalizados na cultura.
Para Luzi, como repetiu em muitas páginas dos seus ensaios e em entrevistas, a poesia é o lugar onde a experiência humana se desvenda, se espraia nas suas interrogações mais elevadas e incontornáveis. Testemunho do humano e do valor da palavra que o exprime, mais forte e persistente do que qualquer violência manifesta ou oculta. Num crescendo que caracterizou a obra de Luzi na segunda metade do século XX, a dimensão interrogativa tornou-se não apenas um traço inconfundível do seu estilo – com evidente peso da herança leopardiana – mas também uma espécie de foco, de motor sempre renovado da sua voz. Até ao poema extremo, deixado em esboço antes de morrer, onde a morte é vista como uma nova possibilidade, misteriosa no seu cumprir-se.
Admirei e frequentei Mario Luzi desde que, com pouco mais de dezoito anos, me veio parar às mãos o meu primeiro livro de poesia. Eu lera já a sua opera omnia publicada pela Garzanti. Na capa, a fotografia dele com um cigarro entre os dedos. Daquela voz límpida, habitada de forte musicalidade e ecos de toscanismos genuínos e longínquos, eu não percebia grande coisa. Mas o seu andamento atraía-me para algo que me pareceu excitante, abissal, movimentado. Daquela voz, que certos ideólogos neo-vanguardistas consideravam invisível, eu não conseguia captar a vastidão dos laboratórios de onde provinha: desde Leopardi, por certo, e especialmente de Dante, até às grandes travessias dos estágios simbolistas francesas, da poesia latino-americana, das traduções de Shakespeare e Racine, e de outras leituras mais excêntricas. Mas eu pressentia o início de uma grande viagem que me iria levar não só a atravessar os territórios ventosos das grandes vozes da poesia italiana e internacional contemporânea – os poetas próximos de Luzi, se bem que muito difierentes, como Caproni, Bigongiari, Betocchi, Heaney, Mutis e tantos outros – mas sobretudo a sentir cada vez mais a força, o poder subversivo das perguntas que perante o devir do mundo revelam a natureza do homem. Essas mesmas perguntas que Leopardi, não por acaso modelo da “naturalidade” do poeta segundo Luzi, mobiliza no Canto nocturno de um pastor errante da Ásia e noutros lugares eternos (estranha uma eternidade de palavras...).
A atitude de perguntar, em Luzi, não reside só na evidente presença das interrogações que se sucedem em muitos dos seus poemas, mas no próprio tecido do pensamento poético: o homem é por natureza uma incessante interrogação que entra e põe em questão o devir do mundo. Em Luzi, a pergunta é a estrutura do ser humano. Não há nenhum outro gesto que, como o viver perguntando, demonstre a profundidade e irredutibilidade do fenômeno humano, do seu ser “falta” e consciência aguda dessa falta. Uma sensação de desproporção, de melancolia que, apesar disso, é força, não deprime. Uma tristeza que aumenta o ímpeto de compromisso com as aparências e com a profundidade do viver:
De que é falta esta falta,
coração,
que num repente dela ficas cheio?
de quê?
Quebrado o dique
inundam-te e submergem-te
as torrentes da tua indigência...
Vem,
vem talvez,
de fora de ti
um apelo
que agora porque agonizas não ouves.
Mas existe, acode-lhe força e canto
a música perpétua... voltará.
Tem calma.
A interrogação humana põe em crise qualquer presumível certeza, inclusivamente a fé, quando em vez de ser misteriosa harmonia com a realidade do mundo e com o seu mistério, ela se converte em esquema, ideologia, indolente percepção do real. Não é uma poesia consoladora, a de Luzi, ela é antes premente. Com frequência desorientadora no seu gume indefectível: aponta para o alto (ou para o fundo, que é o mesmo), não se contenta com descrições, sentimentos fáceis, emoções imediatas. A própria poesia é um evento e, embora composta com habilidade artística, não perde o seu intrínseco risco ontológico: palavras que ligam ao ser ou vaidade...
AMEIXAS E RADAR. As situações, as viagens, as presenças, a mulher (pivô da sua poesia, como escreveu um sutil crítico francês, que é distribuidora, movimentadora do jogo...), são indagadas com a sincera intenção de descobrir a que secreto movimento remetem. A mente do poeta – a mens como era entendida pelos antigos, orgão central da consciência, não o cerebrozinho – é continuamente impelida mais além das aparências, mas é pelas aparências conduzida no início da viagem. Poucos poetas vi apreciar o mundo como Mario. Sentir-lhe a presença viva. Ofereceu-me para dar aos meus filhos – eu tinha ido a Val d’Orcia expressamente para o encontrar – uma cesta de ameixas deliciosas. E recordo, num dos últimos jantares que fizemos juntos pouco antes da sua morte, como espantou e bateu muitos dos convivas em boa disposição e apetite. Foi poeta atentíssimo aos inícios, ao germinar dos acontecimentos, mesmo mínimos (excelente um dos seus poemas sobre a semente), graças também à influência exercida pelo pensamento de Teilhard de Chardin. Não aderiu nunca a uma literatura que não fosse “como vida”, foi muito civilizado em todos os Sensos, recusou as seduções da ideologia, como escreve na magnífica Presso il Bisenzio. Padeceu e falou dos desvarios do amor (In due, ou a poesia violenta e dulcíssima que abre o Autoritratto póstumo). Deu voz a passagens graves da história (o poema pela descoberta do corpo de Aldo Moro, Acciambellato in quella sconcia stiva..., as crises da democracia). Aceitou de João Paulo II o honroso mas difícil encargo de redigir uma Via Sacra que saiu depurada, aromática, românica. E escreveu para o teatro as inquietações da figura de Hipátia (que veio a ser banalmente instrumentalizada em tempos mais recentes), ou a história de Santa Rosália para a sua bem-amada Palermo. Leu com sagácia Rimbaud, São Paulo, o Apocalipse, o Evangelho de São João. Escreveu páginas admiráveis de leituras de outros poetas, de Dante a Montale. Esteve disponível para os mais jovens até à morte. Alguns órgãos da imprensa laicista nunca publicaram resenhas sobre ele (mesmo Montale se guardou bem disso – percebera que Mario se movia fora do alcance do radar do seu ceticismo manhoso), salvo para o instrumentalizar politicamente depois de algumas tomadas de posição como senador vitalício. Não é amado pelos acadêmicos, que preferem poetas mais passíveis de serem desmontados e reduzidos a um exercício de estilo. Aqui há demasiada luz, ou demasiada sombra. Demasiada vida. “Canta-me alguma coisa que se assemelhe à vida”, pedira ele desde o início. Isto suplicava o poeta atormentado e brilhante que se quis “con-fundir” com o movimento do mundo – misterioso, atraente, dramático, tornando-se ele mesmo e a sua obra “vida fiel à vida”.
O HOMEM QUE VINHA DO CASTELLO
Nascido na cidade de Castello, na Itália, em 20 de outubro de 1914, estudou e licenciou-se em Florença em Literatura Francesa. Cursou o ensino médio em Parma, depois foi para Roma, onde trabalhou como conservador bibliográfico. Em 1955, obtém a cátedra de Literatura Francesa em Florença. O primeiro livro de poesia é La barca (1935). Seguem-se obras que situam Luzi na corrente do hermetismo florentino: Avvento notturno (1940) e Quaderno gotico (1947). Com Onore del vero (1957) começa a aproximação da poesia luziana à língua vulgar, que culmina com a recolha Nel magma (1963). O percurso poético prossegue com: Su fondamenti invisibili (1971), Per il battesimo dei nostri frammenti (1985), Viaggio terrestre e celeste di Simone Martini (1994), Sotto specie umana (1999), Dottrina dell’estremo principiante (2004). Dos seus ensaios, recordamos: L’inferno e il limbo (1949), L’idea simbolista (1959), Vicissitudine e forma (1974), Naturalezza del poeta (1995), Vero e verso (2002). No teatro: Ipazia (1972), Rosales (1984), Teatro (1993), Il fiore del dolore (2003).
Tem um lugar especial La Passione, o texto encomendado por João Paulo II para a Via Sacra no Coliseu (1999). No dia 14 de outubro de 2004 recebeu do Presidente da República Carlo Azeglio Ciampi a nomeação de senador vitalício. Morreu em Florença, em 28 de fevereiro de 2005.
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