A “Lenda do Grande Inquisidor” narrada por Dostoievski nos Irmãos Karamazov é, sem dúvida, um dos textos mais célebres e, ao mesmo tempo, mais enigmáticos da literatura. E a cada vez que o relemos fica difícil não nos deixarmos tocar pelo seu fascínio. Eu, que não sou um crítico literário, apaixonei-me por Dostoievski somente porque encontrei nos seus escritos extraordinárias novidades úteis para o conhecimento da raiz das minhas perguntas existenciais. No livro de Vasily Grossman O bem esteja convosco! [Il bene sia con voi!, não traduzido para o português; ndt], publicado recentemente na Itália, o katholikòs de todos os armênios disse que “um conhecimento sério e aprofundado do espírito humano e do homem é imprescindível para estudar Dostoievski”. Mas quem, hoje, é o Grande Inquisidor? Não se trata de lhe dar um nome e um sobrenome, porque é um e muitos ao mesmo tempo. Poderíamos, por exemplo, encontrar traços de sua personalidade nas posições de quem se sente investido da tarefa superior de benfeitor da humanidade. De quem, por trás de “sólidos princípios morais”, gostaria de anular o risco da liberdade para “aquietar a consciência humana de uma vez para sempre”.
Mesmo recentemente a Lenda foi ponto de partida para debates que tendem a reinterpretar, à sua luz, eventos contemporâneos. Tirando algumas exceções – como é o caso do panfleto recentemente publicado por Franco Cassano, A humildade do mal [L'umiltà del male, sem tradução para o português; ndt] – algumas dessas leituras não passam de verdadeiras leituras partidárias forçadas, muito superficiais e parciais. Frequentemente, a Lenda é considerada um relato em si. Na arquitetura dostoievskiana, o texto ocupa, seguramente, um lugar especial, comparável ao que Rei Lear e A tempestade têm no mundo de Shakespeare.
Mas, na realidade, nos Irmãos Karamazov ele aparece no cume da disputa entre Ivan e Aliócha: Ivan acaba de professar sua rebelião contra Deus, porque não pode aceitar as violências cometidas contra as crianças inocentes. Para ele, o fato de que exista o mal é a prova de que Deus não existe. Não há harmonia futura que valha “uma única lágrima daquela menina martirizada, que batia no peito com o pequeno punho e rezava ao bom Deus, no seu fétido cubículo, derramando suas lágrimas sem vingança”. Ivan, portanto, denuncia: “Fixaram um preço muito alto para a harmonia; não podemos nos permitir pagar tanto para ter acesso a ela”. Devolve o bilhete de viagem a Deus, já que a sua razão não pode se resolver a admitir e aceitar a desarmonia que ainda reina no mundo.
A sua revolta é a do Grande Inquisidor que formula um sistema de ordenação baseado na negação da liberdade concedida por Deus ao homem. É este o pano de fundo no qual se insere a Lenda, que conta acerca de Jesus que decide voltar à Terra e ir à Sevilha, na Espanha, no tempo da Inquisição. E todos o reconhecem, desperta a fé e realiza grandes milagres. Exatamente num desses momentos, é notado pelo cardeal grande inquisidor, uma figura imponente de quase 90 anos, que imediatamente manda prendê-Lo. Quando cai a noite, vai até Ele na prisão, e se desfaz num longo monólogo diante do silêncio absoluto de Jesus. O inquisidor não pode aceitar que um Jesus redivivo tenha voltado para incomodar sua obra de benfeitor da humanidade, de homens que não podem sustentar o peso da liberdade e da responsabilidade que Cristo lhes deu. Excluiu-se, assim, do cristianismo tudo aquilo que é superior às forças dos demais, e o reduziu às suas possibilidades e desejos.
No pano de fundo, há a posição do homem diante do drama da liberdade que se encontra na aventura da vida. A alternativa é entre o prestar contas até ao fundo com tal drama ou tentar fugir dele. É deste peso que o Grande Inquisidor nos quer poupar, e deste peso que ele censura Cristo pelo dom da liberdade. O programa será o de aliviar o homem este fardo insuportável, substituindo-o pela autoridade. A humanidade, dessa forma, será reduzida a um rebanho feliz, e a felicidade será paga com o preço da liberdade. Mas, na realidade, será apenas uma caricatura sua, uma felicidade fictícia induzida pelo poder. Seja lá que poder for esse: político, econômico ou até mesmo religioso. Quando, de fato, o poder, antes de ser serviço à pessoa, tende a reduzi-la ao próprio objetivo, tentará inevitavelmente governar os desejos, para assegurar-se do máximo de consenso de uma massa cada vez mais determinada nas suas necessidades.
A questão colocada por Dostoievski é justamente esta: quem, como o Grande Inquisidor, tem a pretensão de se substituir à experiência de liberdade com respostas pré-fabricadas, é exatamente aquele que mais trai a grandeza do homem como ser único e irrepetível. De fato, a sua unicidade e irrepetibilidade é devida ao fato que exercita aquela liberdade pessoa que é tal apenas quando é movida pela sua natural busca pelo bem. O personagem encarnado no Inquisidor promete tranquilizar a sociedade, organizando a vida através de um sistema de seguranças materiais que excluem qualquer risco, empreendimento, criatividade ou chances do amor. Libertando-a “do grave desconforto e do terrível tormento hodierno de ter que, pessoal e livremente, decidir”.
A posição de Dostoievski é resumida pelo silêncio de Cristo: e culmina não num discurso, mas num gesto, o seu beijo no Grande Inquisidor. Como se dissesse que o bem continua bem e o mal continua mal, e de ambos o homem faz experiência. Coloca-se numa zona intermediária onde é chamado continuamente a decidir por um ou por outro. “No lugar de seguir a antiga lei, o homem deveria, no futuro, decidir de si livremente, o que seria o bem e o que seria o mal, tendo diante de si, como guia, apenas a Tua imagem”. Aquilo que o salva é esta presença de Jesus que, no seu silêncio, parece não participar dos acontecimentos, mas, pelo contrário, está presente. O bem é Ele mesmo. Pedra de tropeço contínua para quem gostaria de domesticar a liberdade do homem, para quem tornou o bem apenas um exercício de poder, dobrado e reduzido às conveniências do momento e, sobretudo, separado da sua fonte.
A referência ao Anticristo descrito por outro grande escritor russo, Vladimir Solovyov, é imediata: também ele acreditava no bem, era filantropo e espiritualista, mas não podia tolera a afirmação do stárets João que lhe disse: “Aquilo que temos de mais caro no cristianismo é Cristo mesmo e tudo aquilo que vem dEle”. O esforço do Grande Inquisidor parece o de justificar a sua posição diante deste Jesus que se cala. Sente que está mentindo, mas entendeu o nível do desafio trazido por Jesus para a liberdade do homem. Ele introduziu na história um fator desestabilizante que deixa inquietos e não satisfeitos por nenhuma resposta ou realização humana. É o sentimento daquela “eterna e santa tristeza que algumas almas eleitas, uma vez que a tenham saboreado e conhecido, não trocarão nunca mais por uma satisfação barata”, de que fala admiravelmente Dostoievski nos Demônios.
* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 6 de junho de 2011.
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