Lançado no início do ano passado, “O Diário da Felicidade”, narra o processo de amadurecimento na fé do monge ortodoxo romeno Nicolae Steinhardt, publicado no Brasil pela editora É Realizações. Praticamente desconhecido dos leitores brasileiros, o autor foi um dos pensadores mais intrigantes da cultura romena no século 20. Nasceu em Bucareste, no seio de uma família judia, formou-se em Direito e tornou-se crítico literário, entrando em contato com diversos autores e filósofos de sua época. Steinhardt foi aluno do filósofo romeno Nae Ionescu, além de ter convivido com a elite intelectual romena como Emil Cioran, Eugène Ionesco e Mircea Eliade, todos posteriormente exilados na França, com a chegada ao poder do regime comunista em 1947.
Em 1960, Steinhardt, interrogado pela Securitate, polícia ideológica do regime comunista romeno, recusou-se a colaborar como testemunha de acusação no processo movido contra um grupo de intelectuais, entre eles seu melhor amigo, o filósofo Constantin Noica. Sua recusa lhe custou a pena de 12 anos de trabalhos forçados, dos quais cumpriu quatro. A vida de Steinhardt está intimamente ligada à de Noica, um dos muitos intelectuais romenos que confrontaram o regime instalado em seu país e passaram a ser perseguidos, tendo obras censuradas. O livro, em forma de diário, acompanha as reflexões de Steinhardt rumo à conversão ao cristianismo, núcleo que dá sentido à toda a sua vida. A abertura do pensamento de Steinhardt à realidade, própria do cristianismo, abrange a vida e a cultura. As leituras que fazem parte de sua formação como intelectual, também são comentadas e interpretadas à luz desse grande eixo. Dialoga com obras de autores como Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Thomas Mann, Franz Kafka e Ionescu que mostram a solidão do homem afastado da divindade. Citando as lições de Dostoievski, Steinhardt faz uma interessante defesa da condição humana, fundada no livre-arbítrio, apontando o mal não como criação divina, mas consequência da liberdade humana.
Nesse “Diário” o autor faz, em flashes que vão ora para o futuro, ora para o passado, retratos psicológicos de pessoas, interpreta passagens bíblicas, analisa trechos famosos da literatura ocidental, passa em revista as condições para ser cristão, concluindo que a principal delas é a coragem.
Mostra os estragos físicos e morais trazidos pelos regimes totalitários, e, em resumo, prova que o indivíduo, entregando-se a Cristo, é capaz de transcender o tempo e o sofrimento, chamando de felizes, interiormente, os momentos mais cruéis a que foi submetido em sua vida.
Batizado na prisão em 15 de março de 1960, Steinhart escreve um dos trechos mais iluminados em seu "Diário": "Quem foi cristianizado em criança não tem de onde saber e não pode supor o que significa o batismo. Sobre mim se precipitam cada vez mais os assaltos da felicidade. Dir-se-ia que os assediadores sobem mais e batem com vontade, com precisão. Então é verdade: é verdade que o batismo é um santo sacramento, que existem os santos sacramentos. Doutro modo essa felicidade que me circunda, que me abraça, que me veste, que me toma - vence-me, não poderia ser tão inimaginável milagrosa e plena. Tranquilidade. E uma indiferença absoluta. Diante de tudo. E uma doçura. Na boca, nas veias, nos músculos. Ao mesmo tempo uma resignação, sensação de que poderia fazer qualquer coisa, o estímulo de perdoar a qualquer um, um sorriso indulgente que se espalha por toda a parte, não localizado nos lábios. E certa camada de ar meigo em torno, uma atmosfera semelhante àquelas dos livros de infância. Um sentimento de segurança absoluta. Uma fusão mescalínica em tudo e um pleno distanciamento em direção ao céu. Uma mão que se me estende e uma conivência com as sabedorias advinhadas. E a novidade: novo, sou um homem novo, de onde tanto frescor e renovação? Cumpre-se o Apocalipse (21,5) "Eis que faço eu novas todas as coisas"; e do mesmo modo Paulo: "Se alguém está em Cristo é uma criatura nova". (p. 143)
Steinhardt sai da prisão em 1964 e pouco tempo depois entra no mosteiro ordodoxo de Rohia como bibliotecário. Ordenado padre, sua fama como conselheiro e confessor aumentava, atraindo milhares de visitantes à Rohia, para raiva da polícia secreta comunista. Morreu em 30 de março de 1989. Em 21 dezembro daquele ano ruiu o regime comunista romeno.
Perfil
Nicu-Aurelian Steinhardt, filho de mãe romena e pai judeu, nasceu na Romênia em 1912. Seu pai, engenheiro e arquiteto, foi herói da 1.ª Guerra Mundial. Por linha materna, Steinhardt era parente do psicanalista austríaco Sigmund Freud, a quem costumava visitar em sua juventude. Formado em Direito, frequentou também o curso de Letras na Universidade de Bucareste. Estreou cedo no universo literário, colaborando com algumas publicações. Sua primeira obra a vir a público foi um pequeno volume de posição "liberal-conservadora", escarnecendo tanto das manifestações da nova direita e elitistas quanto as da esquerda. Entre os parodiados estavam Constantin Noica, Emil Cioran, Mircea Eliade, Petru Comarnescu e Geo Bogza. Foi grande amigo do filósofo Constantin Noica e conviveu com os principais intelectuais romenos do século 20.
O Diário da Felicidade
Autor: Nicolae Steinhardt
Tradução: Elpídio Mário Dantas Fonseca
Editora: É Realizações
Credits /
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón