Vai para os conteúdos

LEITURA

Na prisão, tocado pelo olhar de Cristo

03/08/2011 - Em "O Diário da Felicidade", Nicolau Steinhardt, judeu de nascimento, narra a trajetória de sua conversão ao cristianismo durante os mais duros anos do regime comunista na Romênia
Mosteiro de Rohia, na Romênia.
Mosteiro de Rohia, na Romênia.

Lançado no início do ano passado, “O Diário da Felicidade”, narra o processo de amadurecimento na fé do monge ortodoxo romeno Nicolae Steinhardt, publicado no Brasil pela editora É Realizações. Praticamente desconhecido dos leitores brasileiros, o autor foi um dos pensadores mais intrigantes da cultura romena no século 20. Nasceu em Bucareste, no seio de uma família judia, formou-se em Direito e tornou-se crítico literário, entrando em contato com diversos autores e filósofos de sua época. Steinhardt foi aluno do filósofo romeno Nae Ionescu, além de ter convivido com a elite intelectual romena como Emil Cioran, Eugène Ionesco e Mircea Eliade, todos posteriormente exilados na França, com a chegada ao poder do regime comunista em 1947.
Em 1960, Steinhardt, interrogado pela Securitate, polícia ideológica do regime comunista romeno, recusou-se a colaborar como testemunha de acusação no processo movido contra um grupo de intelectuais, entre eles seu melhor amigo, o filósofo Constantin Noica. Sua recusa lhe custou a pena de 12 anos de trabalhos forçados, dos quais cumpriu quatro. A vida de Steinhardt está intimamente ligada à de Noica, um dos muitos intelectuais romenos que confrontaram o regime instalado em seu país e passaram a ser perseguidos, tendo obras censuradas. O livro, em forma de diário, acompanha as reflexões de Steinhardt rumo à conversão ao cristianismo, núcleo que dá sentido à toda a sua vida. A abertura do pensamento de Steinhardt à realidade, própria do cristianismo, abrange a vida e a cultura. As leituras que fazem parte de sua formação como intelectual, também são comentadas e interpretadas à luz desse grande eixo. Dialoga com obras de autores como Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Thomas Mann, Franz Kafka e Ionescu que mostram a solidão do homem afastado da divindade. Citando as lições de Dostoievski, Steinhardt faz uma interessante defesa da condição humana, fundada no livre-arbítrio, apontando o mal não como criação divina, mas consequência da liberdade humana.
Nesse “Diário” o autor faz, em flashes que vão ora para o futuro, ora para o passado, retratos psicológicos de pessoas, interpreta passagens bíblicas, analisa trechos famosos da literatura ocidental, passa em revista as condições para ser cristão, concluindo que a principal delas é a coragem.
Mostra os estragos físicos e morais trazidos pelos regimes totalitários, e, em resumo, prova que o indivíduo, entregando-se a Cristo, é capaz de transcender o tempo e o sofrimento, chamando de felizes, interiormente, os momentos mais cruéis a que foi submetido em sua vida.
Batizado na prisão em 15 de março de 1960, Steinhart escreve um dos trechos mais iluminados em seu "Diário": "Quem foi cristianizado em criança não tem de onde saber e não pode supor o que significa o batismo. Sobre mim se precipitam cada vez mais os assaltos da felicidade. Dir-se-ia que os assediadores sobem mais e batem com vontade, com precisão. Então é verdade: é verdade que o batismo é um santo sacramento, que existem os santos sacramentos. Doutro modo essa felicidade que me circunda, que me abraça, que me veste, que me toma - vence-me, não poderia ser tão inimaginável milagrosa e plena. Tranquilidade. E uma indiferença absoluta. Diante de tudo. E uma doçura. Na boca, nas veias, nos músculos. Ao mesmo tempo uma resignação, sensação de que poderia fazer qualquer coisa, o estímulo de perdoar a qualquer um, um sorriso indulgente que se espalha por toda a parte, não localizado nos lábios. E certa camada de ar meigo em torno, uma atmosfera semelhante àquelas dos livros de infância. Um sentimento de segurança absoluta. Uma fusão mescalínica em tudo e um pleno distanciamento em direção ao céu. Uma mão que se me estende e uma conivência com as sabedorias advinhadas. E a novidade: novo, sou um homem novo, de onde tanto frescor e renovação? Cumpre-se o Apocalipse (21,5) "Eis que faço eu novas todas as coisas"; e do mesmo modo Paulo: "Se alguém está em Cristo é uma criatura nova". (p. 143)
Steinhardt sai da prisão em 1964 e pouco tempo depois entra no mosteiro ordodoxo de Rohia como bibliotecário. Ordenado padre, sua fama como conselheiro e confessor aumentava, atraindo milhares de visitantes à Rohia, para raiva da polícia secreta comunista. Morreu em 30 de março de 1989. Em 21 dezembro daquele ano ruiu o regime comunista romeno.

Perfil

Nicu-Aurelian Steinhardt, filho de mãe romena e pai judeu, nasceu na Romênia em 1912. Seu pai, engenheiro e arquiteto, foi herói da 1.ª Guerra Mundial. Por linha materna, Steinhardt era parente do psicanalista austríaco Sigmund Freud, a quem costumava visitar em sua juventude. Formado em Direito, frequentou também o curso de Letras na Universidade de Bucareste. Estreou cedo no universo literário, colaborando com algumas publicações. Sua primeira obra a vir a público foi um pequeno volume de posição "liberal-conservadora", escarnecendo tanto das manifestações da nova direita e elitistas quanto as da esquerda. Entre os parodiados estavam Constantin Noica, Emil Cioran, Mircea Eliade, Petru Comarnescu e Geo Bogza. Foi grande amigo do filósofo Constantin Noica e conviveu com os principais intelectuais romenos do século 20.

O Diário da Felicidade
Autor: Nicolae Steinhardt
Tradução: Elpídio Mário Dantas Fonseca
Editora: É Realizações

Outras notícias

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página