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LEITURA

O maravilhamento pela vida

por Giovanna Parravicini
21/09/2011 - Foi atacado pelo regime, isolado e obrigado a renunciar ao Nobel. No entanto, o poeta e escritor russo BORIS PASTERNAK “nunca renegou o homem”. O que lhe permitiu viver assim? Um diálogo contínuo com o Mistério
Boris Pasternak.
Boris Pasternak.

“Em cada coisa quero ir / até à essência”. Eis, no fundo, a tarefa que Boris Pasternak se havia dado. Poeta, tradutor e escritor russo, em todo o seu itinerário existencial e artístico desenvolveu um único grande tema: a Vida. Este tema o levou a ser um símbolo para gerações inteiras. Seus versos, temidos e proibidos pelo regime soviético, chegaram clandestinamente até mesmo ao campo de concentração, onde – escreve o poeta Varlam Salamov – “eram lidos como orações”.
No entanto, a vida nunca deu descontos para Pasternak, que pôde ser “encontrado” pelos visitantes do Meeting de Rímini numa das exposições da última edição: tendo nascido em Moscou, em 1890, filho de uma família de artistas judeus, foi batizado pela enfermeira. Enquanto estouravam os eventos revolucionários do início do século XX, conheceu artistas como Alexander Scriabin e Rainer Maria Rilke. Anos mais tarde, a morte de Rilke, o suicídio do amigo Vladimir Maiakovski e a tragédia da coletivização jogaram Pasternak numa crise profunda. São os anos negros do regime, iluminados apenas pelo apelo do coração do poeta russo: “E não deves nem por um instante / recuar ou trair o que tu és, / mas estar vivo, só vivo, / e só vivo – até ao fim”. Não por acaso, algumas de suas coletâneas foram intituladas: Minha irmã, a vida e Segundo nascimento (sem traduções para o português; ndt). Entre 1946 e 1955 trabalhou no romance O Doutor Jivago. Rotulado como “difamação venenosa contra a URSS”, a obra-prima de Pasternak foi publicada, em estreia mundial, na Itália, em 1957. Em 1958, foi-lhe atribuído o Nobel de literatura, mas tendo sido atacado por escritores soviéticos, acabou sendo obrigado a renunciar para não ser expulso do país. Veio a falecer, dois anos depois.
O que permitiu a este homem permanecer de pé, mesmo quando se sentia “perdido como um animal numa armadilha”? Com que certeza enfrentou tudo o que lhe aconteceu? É ele mesmo quem o diz, respondendo ao célebre maestro Leonard Bernstein que se perguntava como ele conseguia tolerar o regime: “Que importância quer que tenha! O artista conversa com Deus... Tudo o que acontece na vida, tudo tem valor porque acontece neste diálogo último do artista – do homem – com Deus”. Por causa deste relacionamento, por causa desta religiosidade vivida, Pasternak pôde captar todos os aspectos do ser, ou seja, a vida no seu mistério primeiro, como escreveria programaticamente:

Em cada coisa quero ir
até à essência.
No trabalho, na procura pelo caminho,
do tumulto do coração.
Até à essência dos dias passados,
até à sua razão,
até aos motivos, até às raízes,
até ao miolo.


O maravilhamento é a dimensão do olhar humano, que percebe a realidade como um dom gratuito e sempre novo: “Desperto / e o que me circunda me abraça” (Segunda balada; também esta obra sem tradução para o português; ndt). O poeta simplesmente é o homem diante do abraço da realidade: não deve se preocupar em contruí-la ou transigurá-la. É a realidade mesmo que vem ao seu encontro e se revela como milagre que suscita comoção e maravilhamento: “Este, de fato, é um novo prodígio, / é, como antes, primavera outra vez”.

"CADA COISA É UMA COISA BOA". Mesmo nas dificuldades da vida pessoal e nas perseguições a que Pasternak foi submetido nos últimos anos, é possível perceber a serenidade profunda que brota desta dimensão cósmica. O poeta não precisa ordena o caos da existência, porque vê o mundo inteiro tal como ele se mostra no primeiro dia da Criação, onde cada coisa “é coisa boa”: “Toda a estepe está como antes do pecado original”.
É exatamente disto que nascem a alegria e a certeza da vida, em qualquer circunstância (“Preciso de ar. No espaço vazio é impensável trabalhar. E não tem ar. No entanto, estou feliz assim mesmo...”, carta de 30 de dezembro de 1953); disto nasce a percepção da santidade de tudo aquilo que vive e existe, e em primeiro lugar de si: “Estou escrevendo entre lágrimas. Choro porque tenho dor... mas choro sobretudo de felicidade: pela consciência da harmonia que Deus infundiu na vida de cada um, criando, de algum modo, cada homem como um templo para Si” (carta de 29 de janeiro de 1958).
Um ímpeto de maravilhamento, de espera, havia impulsionado Pasternak, assim como muitas pessoas do seu tempo, a crer e esperar que a revolução de fevereiro de 1917 trouxesse um vento de novidade. Mas, a revolução podia ser algo grande porque “parecia que junto dos homens se manifestassem e discutissem também as estradas, as árvores e as estrelas”, ou seja, que este empreendimento fosse capaz de responder à vocação íntima do real. Alguns anos mais tarde, diante da traição dos ideais revolucionários, Maiakovski se suicidou, muitos escolheram o caminho da conivência ou, pelo menos, do compromisso; Pasternak se dá conta que deve realizar um gesto tão radical quanto aquele de Maiakovski, por si e para o seu povo, e escreve uma obra – O Doutor Jivago – que, como ele mesmo disse, representa “uma revolução, uma decisão definitiva, o desejo de ir até ao fundo naquilo que eu tinha para dizer, e olhar a vida no espírito da sua antiga certeza, reencontrar os seus fundamentos, em toda a sua amplidão”. A certeza de que fala Pasternak é “um acontecimento que te maravilha”, ou seja, que ultrapassa toda imaginação humana, mesmo na sua mais absoluta realidade. Contra a mentira da ideologia, Pasternak não contrapõe uma ideologia diferente, mais humana, nem mesmo um regime um pouco menos desumano e violento, mas a vida na sua verdade última, que é a Imortalidade, única dimensão que, realmente, pode dar resposta ao desejo do homem: “Há, no mundo, coisas que merecem fidelidade? Bem poucas. Eu acho que se deve ser fiel à imortalidade, este outro nome da vida, um pouco mais forte. Ser fiéis à imortalidade, fiéis a Cristo!”. É isso: trata-se da alternativa entre o homem “religioso”, ou seja, o homem aberto ao milagre que pode surpreendê-lo em cada curva do rio da vida, e o homem irreligioso, que considera a vida como uma obra das próprias mãos. Uma alternativa bem visível na contraposição entre Yuri Jivago (um personagem sem caráter e sem vontade, o contrário exato do “homem de ferro” a que o socialismo aspirava construir) e Pasha Antipov, um dos protagonistas da revolução em nome da justiça e do bem da humanidade, partidário do regime. É o emblema do homem que tende a plasmar a vida com as próprias mãos, e se tornar o seu próprio artífice. É o homem que segue rumo ao alvo, a ponto de assumir o nome de batalha Strelnikoff (de streliat’, disparar, e strela, flecha). Ao contrário de Jivago, Strelnikoff escolhe para si um papel e, em nome do próprio projeto, age teimosamente no sentido de ver realizada a justiça assim como a compreende. Mas, precisa se dar conta de que a vida não é aquilo que pensava, não é previsível. As desilusões acabam por exasperá-lo, mas já era tarde para voltar atrás: depois de ter semeado devastação e morte em nome da ânsia de bem que tinha, acaba por tirar a própria vida. Assim, Pasternak descreve o verme que corroi as ações deste herói íntegro que acaba matando a si mesmo. É uma caricatura da vida, uma tentativa de encaixá-la, de sufocar o mistério que ela representa: “Dois traços distintivos, duas paixões o dominavam. Os seus pensamentos eram de uma clareza e de um equilíbrio extremos. Possuía em medida rara pureza moral e senso da justiça, era movido pelos mais nobres sentimentos. Mas, para ser um cientista que abre novos caminhos, faltava à sua inteligência o dom do fortuito, a força que, com descobertas imprevistas, viola a harmonia estéril do previsível. Do mesmo modo, para colocar o bem em ação, faltava à sua coerência de princípios a incoerência do coração, que não conhece casos gerais, mas apenas o particular, e é grande porque age na esfera do pequeno”.

A CHAVE DADA. A chave de Yuri Jivago para entrar no conhecimento do real é totalmente outra, é a gratidão e a luz do fascínio, um amor que tem uma dimensão cósmica: “Como é doce estar no mundo e amar a vida! Poder-se-ia dizer obrigado à vida por aquilo que é, dizer diretamente a ela!”. A “chave do conhecimento” é dada ao protagonista de Pasternak, como ele repete frequentemente, de forma gratuita e sem merecimentos, “acidentalmente e por acaso”, antes que houvesse algum pedido seu, à luz do cotidiano. Assim como acontece com todas as coisas autênticas. “Somente aquilo que é grande é tão inoportuno e intempestivo”. Não se trata de encantamentos e de fórmulas mágicas, não se trata de um heróico caminho no nada, mas um encontro casual: uma vela numa janela coberta de gelo, vista da estrada. Não se trata de uma conquista, mas de um dom a que ceder. É somente aquil que se encontra a possibilidade de se maravilhar com as coisas, mesmo de uma cena que se repente todos os dias, como o despertar da cidade:
Em todos os lugares, se levantam, luzes e intimidades,
e quem toma o chá, quem se apressa no bonde:
bastam poucos minutos
e a cidade tem todo um outro rosto...

Eu, por eles, por todos, sinto
como se estivesse na sua pele,
eu também derreto como a neve derrete,
eu, como a manhã, franzo o cenho.

Pessoas sem nome são como eu,
árvores, crianças, pessoas caseiras.
Sou vencido por todos eles,
e somente nisto se encontra a minha vitória.



"IRMÃ VIDA"

1890 Boris Pasternak nasce em Moscou, numa família judia. É batizado pela ama.
1913 Licencia-se em Filosofia e publica as primeiras poesias.
1922 Casa-se com uma pintora, de quem terá um filho. Publica a coletânea A minha irmã vida.
1930 Diante do suicídio de Majakovski e dos horrores da coletivização, entra em crise.
1931 Volta a casar com outra mulher. Nestes anos traduz Goethe e Shakespeare.
1946 Até 1955, trabalha no romance Doutor Jivago.
1958 É-lhe atribuído o Nobel da Literatura, mas é obrigado pelo regime a recusá-lo.
1960 Morre em Peredelkino.

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