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LEITURA

O mal não tem a última palavra

por Raúl Cesar Gouveia Fernandes
12/02/2015 - Romance “Crime e Castigo” de Fiodór Dostoiévski não apenas “discute” ou “reflete” sobre questões morais. O autor coloca a tema o homem, sem censurar nada da sua humanidade
Editora 34, São Paulo, 2009, 568 págs.
Editora 34, São Paulo, 2009, 568 págs.

O cenário é São Petersburgo, capital do Império Russo no século XIX, cidade repleta de bêbados e vadios, retratada como lugar sujo e insalubre. Os personagens principais são um assassino, uma prostituta, um alcoólatra inveterado, um velho trapaceiro e lascivo. A história trata de um homicídio cometido a sangue frio e sem motivos aparentes. É a partir desse material que Dostoiévski criou Crime e Castigo, um de seus romances mais célebres.

Costuma-se dizer que a obra trata do grande problema do mal e da culpa, mas ela faz mais que isso. O livro não apenas “discute” ou “reflete” sobre questões morais: é como se o autor, conhecendo em primeira pessoa as limitações e as incongruências humanas, lançasse um olhar cheio de compaixão para os abismos da alma. Com efeito, o amor de Dostoiévski pelo homem se traduz na intenção de trazê-lo todo à tona, sem censurar nada, sem negar até mesmo os aspectos mais sombrios, em suas várias dimensões (a miséria moral e social, a iniquidade, toda sorte de vícios).

Mergulhando a fundo no coração de um homicida – Raskólnikov, o protagonista do romance – e dos demais personagens que o rodeiam, o leitor encontrará um universo complexo e multifacetado. Ali, como na vida, muitas vezes o bem e o mal aparecem intrincados em combinações surpreendentes. Isso não significa que tudo seja justificável, pois a culpa de Raskólnikov é objetiva e ele deverá expiá-la (ainda que a sua seja, sobretudo uma expiação moral); mas, à medida que vão sendo desvelados o caráter e as motivações dos personagens, percebe-se que a mentira pode estar escondida por trás de insuspeitas aparências, assim como a verdade pode brotar das pessoas ou situações mais condenáveis. Por exemplo, é o derradeiro ato de generosidade de Svidrigáilov, um repugnante libertino, que salva um grupo de órfãos da miséria absoluta; por outro lado, a personagem que melhor encarna a experiência da fé é Sônia, a prostituta.

Por isso, em Crime e Castigo, o mal – mesmo se pintado em toda sua crueza – não representa a última palavra. A opressiva atmosfera em que a história se desenrola não extingue a chama de bem que, a despeito de tudo, é capaz de redimir o homem. Não se chega, porém, ao tradicional happy end, em que toda contradição é eliminada. A esperança que Dostoiévski apresenta não é a de uma verdade que brilha apesar das trevas; ela deve brilhar justamente nas trevas em que o homem vive, alcançando a pessoa concreta e suas mazelas reais.

A pungente confissão de Marmeládov, o incorrigível beberrão que tem plena consciência de ter arrastado a família à miséria, é o melhor exemplo disso. A cena, narrada num dos capítulos iniciais do livro, se passa durante encontro casual ocorrido numa decadente taberna (o que, diga-se de passagem, também não é mero acaso: trata-se de mais uma das contradições a que viemos acenando) e vai mudar a vida de Raskólnikov de modo imprevisto. Terminada a apresentação de sua triste história, Marmeládov faz uma surpreendente alusão ao Juízo Final, dizendo que, então, Cristo chamará para si os fracos, os humildes e os pecadores, como ele. Em síntese, o personagem afirma que o destino dos homens não é determinado apenas por seus erros e fraquezas – de modo que a misericórdia, descrita com rara profundidade pela boca de um bêbado, paira como uma promessa por sobre o desenvolvimento do drama.

É a misericórdia, com efeito, o único fator capaz de romper a implacável lógica segundo a qual a toda falta deve seguir-se uma correspondente punição – a cada crime, seu castigo. Não é à toa que o episódio da ressurreição de Lázaro seja transcrito numa das cenas centrais da obra: diante do mal que condena à morte, ocorre o imprevisto. O que Crime e Castigo nos lembra é que a salvação do homem não virá após a superação de nossas misérias, mas sim de um abraço amoroso que acolhe nossa humanidade ferida. Como aconteceu a Sônia, a prostituta; como aconteceu a Raskólnikov, o assassino.

*O livro é indicado como leitura do bimestre para janeiro e fevereiro 2015.

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