LEITURA

A presença imponente de Aparecida

por Alexandre Ferraro

06/04/2015 - Novo livro sobre o maior símbolo da fé católica brasileira. Fruto de pesquisas realizadas no Brasil e no exterior pelo jornalista Rodrigo Alvarez, traz três séculos de história sobre a padroeira do país

Quebrada. Quando o Papa Francisco usou esse adjetivo para falar de Nossa Senhora Aparecida ele nos ajudava a entender melhor o mistério que Deus quis tornar visível através da imagem da Padroeira do Brasil. E o livro Aparecida – A biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil lançado há poucos meses pela Globolivros, de autoria de Rodrigo Alvarez, ajuda-nos a captar melhor a intuição do Papa.

Com uma escrita jornalística e fruto de anos de pesquisa, este livro traz-nos uma descrição de como foi a relação da imagem de Aparecida com o Brasil Colônia, depois Império, Primeira República, Estado Novo, Ditadura Militar até os dias de hoje. Seu autor não demonstra muita familiaridade com a fé católica (repetidamente define de forma equivocada o dogma da Imaculada Conceição), e esse fator só torna o livro mais interessante, por nascer de “olhos externos” à devoção.

Por toda a primeira parte do livro somos conduzidos através do terrível episódio de 1978 e que poucos guardam na memória ou sequer ouviram falar: quando a imagem de Aparecida, feita de barro cozido, foi toda espedaçada por um “louco”. Ela não só nasceu quebrada – a cabeça separada do corpo; ela não só teve a mesma cabeça desgrudada desse corpo várias vezes nesses séculos pelos cuidados precários que padecia. Mas foi também toda quebrada num atentado. Quando voltamos a pensar nesse episódio ao final do livro, depois de ter percorrido a “biografia” da santa, percebemos o quão violento ele foi contra toda uma nação e seu símbolo sagrado.

A sua reconstrução é descrita com detalhes: como utilizaram-se até as migalhas das centenas de pedaços para restaurar a santa, migalhas junto com o pó do chão pisado pelos romeiros que foi devotamente varrido e juntado aos cacos na esperança de se ver Nossa Senhora reconstruída. A imagem que hoje veneramos é feita não só do barro do chão desta terra, moldado e levado ao forno há 3-4 séculos, mas também do pó coletado imediatamente pelos fiéis em 1978 e que veio a preencher as lacunas perdidas para sempre da imagem original.

Um detalhe interessante é descrito pelo autor: a única cola adequada para remendá-la, segundo os melhores padrões da restauração artística que o Brasil dispunha, era uma cola argentina. Como da Argentina veio a solução para a reconstrução da imagem, assim também de lá viria o papa que nos fez entender mais o seu mistério.

Não só esse destino de precariedade material é marcante na história da Virgem Aparecida. É decisiva também sua própria origem: de barro e não de madeira entalhada, como eram as imagens mais prestigiosas na época em que foi feita; não bonita de feições; enegrecida pela lama do rio. Não é de se maravilhar que por muito tempo os grandes do Brasil, na Igreja e no Estado, ignoraram-na. Mas não o povo. Os milagres que aconteceram desde os primeiros instantes de seu achado foram suficientes para convencer o caipira simples daquelas terras que ali havia a mão de Deus.

Só quando o número de romeiros e o valor de suas contribuições começaram a aumentar é que os grandes notaram a sua existência. Daí nascia um novo problema: ela passaria a ser usada por monarcas, padres e governantes como fonte de renda e prestígio.

Mas a verdadeira obra de fé que Deus planejava não podia ser impedida por nenhum desses fatores. Conhecer esses pedaços tristes da história e olhar hoje aquela imagenzinha feinha no seu belíssimo e gigantesco santuário só nos enchem de certeza de que tudo pôde chegar onde chegou porque Deus agia.

Duas lembranças pessoais ecoaram-me logo nas primeiras páginas do livro. O autor constata que antes do futebol, da bandeira, do hino nacional serem identificados como símbolos de todo um país, Nossa Senhora Aparecida já era. Quando eu era estudante de medicina e tinha 20 anos de idade fui à Amazônia pela primeira vez. De Manaus pegamos um carro e fizemos 2 horas de estrada. Depois uma canoa motorizada e mais 2 horas pelos igarapés, viajando sob copas de árvores gigantes. Até chegarmos a um clareira da floresta onde morava uma senhora de 80 anos com o marido. Isolados. Mas visitados pelo padre que eu acompanhava e que ia lhes levar a comunhão algumas vezes no ano. Entrando na casa a senhora me levou logo a ver a imagem de Aparecida dominando o ambiente. Passados 28 anos lembrei-me desse episódio há 2 meses, quando levava alunos de medicina numa roça no interior do Espirito Santo. Entramos na casa de um camponês que, ao saber que vínhamos de SP, disse sem conter a lágrima e tirando o chapéu: “uma vez por ano viajo a Aparecida. É o lugar mais lindo do Brasil!”.

Mas o que é característico dessa imagem de Nossa Senhora? Guadalupe, Lourdes, Fátima foram lugares em que a própria mãe de Deus apareceu, falou e agiu. Histórias que nos enchem de espanto até hoje. E Aparecida?

A sua presença. Ela mesma; aquela materialidade que vemos com nossos olhos de carne. Com medo dos protestantes veem-se com frequência católicos dizerem que aquilo é só um símbolo, que não o adoramos. E é verdade. Mas dito dessa maneira simples perde-se o melhor que Deus quis nos dar. O melhor desconsiderado até pelas mãos da artista que a restaurou em 1978 e que costumava repetir: “isso aqui é só matéria”.

A genialidade católico-ortodoxa sempre reconheceu que com a encarnação o divino decidiu passar pelo efêmero, pelo limitado, pelo humano. O humano escolhido por Deus não é só o homem Jesus de Nazaré, ponto no tempo passado e vislumbrado agora só pelas escrituras. O método da comunicação de Deus permaneceu na história. Ele passou pela humanidade de Maria, dos apóstolos, de todo o povo cristão, com suas virtudes e vícios. Deus escolheu passar pela materialidade, pela humanidade de cada um de nós, não se escandalizando do fato dela ser não prestigiosa e feia. De ser quebrada.

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