Os ingleses são um povo prático. Portanto, poético. “O deserto é derrotado no trem do metrô, ao teu lado / O deserto está no coração do teu irmão”. Mais bonito na língua original: “The desert is squeezed in the tube-train next to you/ The desert is in the heart of your brother”. Os amigos de Passos me pedem que narre como teria sido a existência sem os Coros de “A Rocha”, de Thomas Stearns Eliot. Sem aquele mantra ditirâmbico (o ritmo da métrica inglesa que pesca na grande memória de Shakespeare) que nos fascinou desde a juventude, quando Dom Giussani lia para nós, pela primeira vez, aqueles versos hipnóticos e profundíssimos. Sem eles, a existência teria sido mais vazia, antes de tudo por duas passagens. A primeira é aquela em que se refere à Encarnação. Não há tratado teológico, nem pregação cristã, não exegese bíblica comparável a esses versos: “Um momento não fora do tempo, mas no tempo, no que nós chamamos de história: seccionando, dividindo o mundo do tempo, um momento no tempo, mas não como um momento de tempo. Um momento no tempo mas o tempo foi criado através daquele momento: porque sem significado não existe tempo, e aquele momento de tempo deu o significado. Portanto, pareceu como se os homens devessem avançar da luz a luz, na luz do Verbo”.
A poesia capta, na repetição das mesmas palavras, o milagre de algo que acontece. É mais fácil recitar a Ave-Maria depois de ler esses versos. Como acontece com certos versos de Leopardi. Ou de Dante. Ou quando, de moto, de manhã, ouço Schumann no fone do Ipod e aí se torna menos distante e estranho rezar. No deserto do tráfego, diria Eliot, onde os nossos irmãos correm com o deserto no coração. Onde nós viajamos, como eles, com o deserto no coração, “bestiais como sempre, carnais, egoístas como sempre, interesseiros e obtusos como sempre”, mas “sempre em luta, sempre a reafirmar, sempre a retomar o próprio caminho na estrada iluminada pela luz”.
Mas eu falei de duas citações. A outra: “A Igreja é que abandonou a humanidade ou foi a humanidade que abandonou a Igreja?”. Dom Giussani levou a sério esse verso, essa pergunta poética e muito concreta, escrita por Eliot em 1934, naquele parêntese provisório de paz entre as duas guerras mundiais, quando todos diziam que a Itália era solidamente católica e o poeta já percebia a descristianização radical na Londres de então. Giussani respondia com veemência: “As duas coisas”. A Igreja não sabe mais quem é o homem, e o homem de hoje não sabe mais o que é a Igreja. Só a poesia pode captar com perfeita precisão o sentido da história. Eis porque as poucas pagininhas de A Rocha (são vinte páginas, não mais que isso) merecem ser lidas e refletidas, declamadas em inglês, degustadas na língua original. Para quem está viajando, merecem ser lidas talvez num pub londrino, diante da tão citada “half pint of bitter Ale”, a ótima cerveja morna que se bebe por lá. Como diz o poeta: “You must not deny the body” (A gente não deve desprezar o corpo).
Povo prático, esses ingleses.
Edições nacionais (esgotadas no fornecedor):
- ELIOT, T.S. Obra Completa. Trad. Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004. Vol. I
- ELIOT, T.S. Poesia, Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006
Edição portuguesa:
- ELIOT, T.S. Coros de "A Rocha", Ed. Tenacitas, Coimbra, 2014
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón