É um livro que você começa a ler com certas ideias, um arsenal de experiências e pensamentos. E, ao terminá-lo, você se dá conta de que está em jogo algo muito mais profundo do que pensava. Na verdade, parece quase falar de outra coisa.
O nome de Deus é misericórdia (Ed. Planeta do Brasil, 2016), o diálogo de Papa Francisco com Andrea Tornielli (vaticanista do jornal La Stampa), nas livrarias de 86 países desde o dia 12 de janeiro, é antes de tudo uma ocasião para aprofundar o tema do Jubileu que começou. Mas é também um instrumento para retomar o fio condutor de todo o Pontificado, já desde as primeiras homilias proferidas em março de 2013. Para o Papa, a época que vivemos é realmente “o tempo da misericórdia”. Uma época em que é decisivo para todos “abrir o coração ao miserável” (etimologicamente “misericórdia” significa isto, lembra), mas à Igreja em particular é pedido mostrar “o seu rosto materno, o seu rosto de mãe à humanidade ferida”.
E são feridas profundas, chagas que o homem “não sabe curar, ou, pior, acredita que não seja realmente possível curar”. À falta de rumo do relativismo (que “fere tanto as pessoas: tudo parece igual, tudo parece a mesma coisa”) e ao drama da nossa época, já indicado por Pio XII (“a perda do senso do pecado”), soma-se outro: considerar o nosso mal como incurável, como algo que não pode ser curado. E isto porque, observa o Papa, “falta a experiência concreta da misericórdia”. Falta, frequentemente, alguém disposto a “doar o próprio tempo para escutar os dramas”, para exercitar o “apostolado do ouvido” que, diz Francisco, é fundamental para que o homem possa redescobrir a verdade mais potente e decisiva sobre si: é amado. Antes de qualquer outra coisa, é desejado e amado por um Deus disposto a perdoá-lo, sempre. Com uma modalidade que excede qualquer medida humana: porque a misericórdia “não é só o perdão de Deus, mas é o modo com o qual perdoa, a sua ternura”.
Basta pouco para que esta graça entre na vida. Quase nada. Mas é um “quase” que faz uma grande diferença. Basta se reconhecer pecador, necessitado, limitado. Ter consciência do nosso pecado, e pedir. “A misericórdia existe, mas se você não quer recebê-la... Se não se reconhece pecador quer dizer que não a quer receber”. Consciência que pode ser débil, fragilíssima. Como tudo, em nós, é frágil. Pode ser também apenas um passo. Tornielli, em uma pergunta, lembra uma citação de Dom Giussani sobre Bruce Marshall. À beira da morte, diante do confessor que lhe perguntava se estava arrependido, responde com sinceridade absoluta: “Como faço para me arrepender? Era uma coisa que eu gostava, faria novamente. Como faço para me arrepender?”. E o confessor, que queria salvá-lo, diz: “Você se ressente por não se ressentir?”. “Sim”. “Ou seja, sinto muito por não estar arrependido: foi a brecha que permitiu a absolvição...”, oberva Tornielli. O Papa replica: “É verdade, é assim. É um exemplo que representa bem as tentativas que Deus faz para abrir uma brecha no coração do homem. Espera-nos, espera que lhe concedamos apenas uma mínima fissura para poder agir em nós”. Uma fissura. Um fio de razão que reconhece e de liberdade que se abre.
É daí que o Papa começa. Dessa fissura que não é uma questão de sentimento, mas representa uma consciência do próprio eu (Francisco repete isso sempre, falando de si, também neste livro: “Sou um homem perdoado por seus muitos pecados”). E, partindo daí, começa a mostrar que as feridas são curáveis, que o remédio existe, sempre.
No livro, Francisco também fala sobre a diferença de fundo entre pecado e corrupção que, porém, é injustificável. Fala da família, “primeira escola de misericórdia”. Da compaixão. Da misericórdia dos homens. Da sua preferência pelos encarcerados porque “sempre penso que poderia estar no lugar deles”. Até o último capítulo, sobre “como viver o Jubileu”: apenas três páginas, incluindo um percurso sobre as obras de misericórdia. Mas deveriam ser decoradas. Porque são um tesouro que devemos alcançar continuamente, neste ano. E na vida.
APROFUNDAMENTOS
> A colocação de Zhang Agostinho Jianqing, detento de Pádua, na apresentação do livro do Papa em Roma.
(texto publicado em Passos 177, jan/fev 2016)
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