“O individualismo é uma tentativa tão velha quanto o homem de resolver os problemas, e implica o relacionamento entre o próprio bem e o bem dos outros, a tensão entre eu e comunidade. O fato de não viver sozinho, mas de estar sempre dentro de uma comunidade, nos constringe a decidir continuamente a maneira de enfrentar este paradoxo”. Era novembro de 2009, quando padre Julián Carrón lançou essa provocação na Assembleia da Companhia das Obras. E aquele “bem para todos” que é a outra face da “sua obra” foi o fio condutor do trabalho destes meses. Atravessou encontros, debates, assembleias, descobertas e redescobertas. Como a de um grande conjunto de afrescos, na nossa tradição, cujo tema é exatamente essa tensão dramática ao bem comum: conjunto que foi pintado entre 1337 e 1339 por Ambrogio Lorenzetti no Palácio do Governo de Siena.
A obra prima de Lorenzetti decora a Sala dos Nove, do Governo guelfo (1287-1355) a quem a cidade de Siena, na Itália, deve o momento de seu esplendor máximo, aquele em que a cidade toma a forma que ainda a caracteriza. Os afrescos estão afixados em três paredes, mas tematicamente são bipartidos: nas paredes norte e leste encontramos a Alegoria do Bom Governo e seus Efeitos na Cidade e no Campo e, na parede ocidental, a Alegoria do Mau Governo e seus Efeitos.
Como a Comédia. Para entender a complexa pintura, é preciso preferencialmente partir da Majestade, que Simone Martini pintou na sala antiga, destinada ao Conselho Geral de Siena, em 1315. Maria é a rainha da corte celeste e segura nos braços, Jesus, que mostra um pergaminho onde está escrito o início do Livro da Sabedoria “Diligite iustitiam qui iudicatis terram” (Amai a justiça, vós que governais a terra). O convite de Cristo é desenvolvido por Nossa Senhora, que dirige duas exortações (que podem ser lidas no degrau do trono e na moldura do afresco) ao Conselho Geral de Siena: nelas, a Virgem julga pontualmente as discórdias e as prepotências dos cidadãos, exortando à justiça e aos bons conselhos. Por outro lado, o engano do povo acontece por obra de quem tende à própria situação, isto é, ao interesse individual, ao invés de ao bem de todos. As inscrições estão em conjuntos de três versos hendecassílabos encadeados, mesmo esquema métrico da Divina Comédia, retomado aqui pela primeiríssima vez, enquanto Dante ainda vivia.
Vinte anos mais tarde, Lorenzetti desenvolveu aquilo que a Majestade, de Simone, acenava. Aqui também um complexo aparato de inscrições esclarece a visão dos afrescos (4 estrofes e duas conclusões, num total de 62 versos), que começam com a mesma frase do Livro da Sabedoria, que já encontramos na Majestade e que – não é inútil lembrar – Dante vê compor-se no Céu de Giove, o da Justiça, no canto XVIII do Paraíso.
Na Alegoria do Bom Governo, da Justiça, cujo olhar é voltado à Sabedoria, partem dois fios, que entrelaçados pela Concórdia, passam nas mãos de 24 cidadãos: a corda chega, assim, à figura central do afresco, o Bem Comum, que é dominado pela Fé, Esperança e Caridade, e senta entre as virtudes cardeais (Prudência, Justiça, Temperança e Fortaleza), às quais Lorenzetti acrescenta a Magnanimidade – a alma grande, capaz de um horizonte vasto, que sabe redimensionar o interesse mesquinho e pensar no bem de todos – e a Paz, o termo do desejo do homem. A inscrição comenta pontualmente o que foi dito: “Esta santa virtude, [a Justiça] onde governa,/induz à unidade as múltiplas almas,/e estas, a ela recolhidas,/um bem como para seu senhor é feito,/o qual, para governar seu estado, escolhe não ter jamais os olhos voltados / para o esplendor dos rostos das virtudes que em torno a si se encontram. Por isso, com triunfo a ele são oferecidas pensões, tributos e senhorio de terras, por isso sem guerras, segue-se depois cada êxito civil, útil, necessário e agradável”.
E aos Efeitos do Bom Governo na cidade e no campo é dedicado o grande afresco da parede oriental: na vasta cena, talvez – com razão – a mais famosa da Sala, Ambrogio quis pintar como é doce e tranquila a vida da cidade em que se tende ao bem comum. O trabalho ebule em cada ângulo, contrói-se, casa-se, filhos são colocados no mundo: a dança em primeiro plano traduz alegoricamente a Letícia comum.
Na parede oeste encontramos a Alegoria do Mau Governo e Os Efeitos do Mau Governo na Cidade e no Campo: a Justiça está amarrada, domina o bem próprio com sua triste corte de vícios e, por isso, inevitavelmente todo relacionamento é violência. A cidade está desolada, tudo está em decadência, não há mais nem trabalho nem família. Há insegurança no campo, devastado por homens armados, dominado pelo Temor. Os afrescos eram conhecidos por todos em Siena, tanto que São Bernardino, em seus sermões na praça do Campo, os cita muitas vezes. Mas de onde nascia um mundo assim? Uma história, desconhecida da maioria, responde a essa pergunta.
O cartão escondido. No dia 23 de janeiro de 1944, um violento bombardeio das forças aliadas atingiu a periferia de Siena: a maior perda para o patrimônio artístico foi a Basílica da Observância, que foi quase completamente destruída. Sobre o altar principal da igreja havia um belíssimo Crucifixo de madeira – do qual permanecia desconhecido, até então, o autor e a época em que fora feito – que foi literalmente pulverizado. Entre os escombros, os frades encontraram alguns fragmentos dos joelhos e do braço esquerdo e boa parte da cabeça. A surpresa foi encontrar um pequeno cartão grudado no fragmento do joelho e um pergaminho um pouco maior escondido dentro da cabeça do Cristo. Eram textos biográficos do autor da obra: Lando di Pietro. No pequeno cartão escondido no joelho está a data e o autor da obra (Ano do Senhor de 1337, Jesus Cristo, por sua misericórdia seja-te recomendada a alma de Lando di Pietro, ourives que fabricou este crucifixo”).
No pergaminho encontrado na cabeça do Crucifixo há, porém, uma longa e comovente oração que Lando dirige a Nossa Senhora e aos Santos, para que confiem a Deus seu destino, o de sua família e de toda a geração humana.
No mesmo ano em que Ambrogio Lorenzetti pintava o Bom Governo no Palácio do Governo, Lando di Pietro, grande artista sienense, autor, entre outros, da ampliação da Duomo, esculpia o grande Crucifixo, agora destruído. Mas, paradoxalmente, foi exatamente a destruição da obra que revelou a todos o coração do artista: é essa tensão ao ideal que o homem vive no segredo de sua existência cotidiana e que “esconde” na sua obra, a raiz misteriosa que aparece na concórdia da Siena que Lorenzetti representou. A sua obra é um bem para todos, se tem dentro o conteúdo desse cartão: parece nada, mas é dessa tensão ao verdadeiro que a pessoa vive no seu trabalho que pode nascer um mundo mais belo. É o coração de um artista que escondeu dentro da obra seu comovido diálogo com Cristo.
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