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ARTE

O barco de Bill

por Pigi Colognesi
17/04/2012 - Ele nasceu cem anos atrás, na noite do naufrágio do Titanic. Um jovem de boa família que se tornou artista, diante da tragédia de um campo de concentração. Eis a vida aventureira de um pintor e de um cristão
O quadro <em>Canal Venice</em>, 1952. Abaixo, Bill Congdon.
O quadro Canal Venice, 1952. Abaixo, Bill Congdon.

Comemorar o centenário de um personagem conhecido é arriscado. A gente se tranquiliza porque acendeu um grãozinho de incenso em memória do celebrado, mas evita refletir sobre a razão pela qual vale a pena recordá-lo. Retomar a sua biografia significa, pois, colocar-se a pergunta: o que diz a nós hoje a sua experiência de artista e de cristão? Creio que se pode responder lendo a sua vida como uma dramática e fecunda obediência.
Congdon nasceu em 15 de abril de 1912, numa rica família de industriais de Rhode Island. A sua formação é típica da alta burguesia protestante norte-americana: sólidos princípios morais, dedicação incondicional aos negócios, religião suficiente para viver bem em sociedade. Um horizonte que, para William (segundo filho), se torna sufocante e inadequado às suas aspirações. Quando se trata de escolher a universidade, Bill, como era conhecido, foge dos esquemas que preveem, para ele, estudos voltados para os negócios da família e se inscreve na faculdade de Literatura na prestigiada Universidade de Yale. É aí que um amigo, casualmente, o convida a seguir os cursos de pintura. É quando se abre para ele um impensado horizonte de criatividade gratuita, é a descoberta da arte. Para cultivá-la, Bill escolhe mestres estranhos às regras da academia, os quais refinam e modelam a sua técnica.
Para subverter os primeiros passos da sua carreira artística, eclode a Segunda Guerra Mundial. Bill é recrutado como motorista de ambulância; nesse papel, é um espectador das carnificinas de El Alamein e de Monte Cassino e dos horrores do campo de concentração de Bergen-Belsen. Frente a essa imensa tragédia, Congdon se dá conta de que o dom artístico de que se sente dotado não é só uma, ainda que refinada e livre, forma de expressão do indivíduo: é um duelo com a morte. Pintar é arrancar da caducidade daquilo que se vê uma imagem viva, e de certo modo assim se salva do nada tanto a coisa vista quanto o artista. A arte não é um brincadeira estética, mas a possibilidade de se agarrar a um barco salvador do sentido nos redemoinhos tumultuosos da insignificância. A metáfora não foi escolhida por acaso; Bill gostava de lembrar que nasceu no mesmo dia do naufrágio do Titanic, e costumava comparar a sua existência à viagem de um barco continuamente ameaçado pelas tempestades.
Tendo descoberto o barco salva-vida da arte, Congdon decide se entregar integralmente a ela. Depois da guerra, deixa a cidade natal e se transfere para Nova York, que está para se tornar a capital mundial da arte. É uma temporada riquíssima; Bill encontra o sujeito da sua pintura na própria cidade, síntese de todas as confusas humanidades que a compõem e emblema de existências que tendem à vida e à harmonia e são constantemente ameaçadas pela morte e pela ruína. Ele trabalha e expõe ao lado de uma geração de grandes artistas (Pollock, Rothko, Kline), para os quais o gesto de pintar – Action Painting – exige um total envolvimento existencial, uma luta para que linhas, cores e materiais extraiam o segredo que se esconde atrás do óbvio, o facilmente consumível, o codificado nas formas tradicionais.
É também uma fase de sucesso; mas o que Congdon busca não pode, certamente, ser encontrado nas satisfações mundanas ou nas páginas coloridas da Life. A obediência ao seu dom artístico empurra-o, então, para longe dos EUA, num interminável vaguear pelo mundo – da Itália ao Extremo Oriente – à busca de imagens que, transpostas da memória para a tela, possam, ainda que por breve tempo, manter a promessa de bem que as suscitaram. Seu barco navega pelos mais belos lugares do mundo e o timoneiro se apossa vorazmente da sua beleza natural ou das obras construídas pelo homem e as transfigura numa série inumerável de quadros.
Mas nenhum desses lugares é o porto desejado, e a cada retorno a Veneza, eleita como segunda pátria, a esperança de salvação é cada vez mais fraca. Tanto que Congdon chega à beira do desespero: a arte, sozinha, não consegue vencer a morte; aquela morte vista no íngreme vulcão de Santorini, no trem descarrilado às margens do deserto, no abutre da Guatemala.


O porto. Estamos no verão de 1959 e é nesse ponto que, de novo, se insere um evento imprevisível: o encontro que convence Congdon a ingressar no seio da Igreja católica, autêntico porto de salvação. No início é a companhia da Pro Civitate Christiana, de Assis, e depois aquela nascida em torno de Dom Giussani: Comunhão e Libertação e, em especial, os Memores Domini, aos quais permanecerá fiel até a morte. Para o neoconvertido não é fácil harmonizar a obediência ao dom artístico com a pertença eclesial. Transferido de maneira estável para Assis, Bill aceita como solução possível dar à sua arte conteúdos religiosos, mas esse é um atalho que dura pouco: o dom não pode ser engaiolado dentro dos limites do devocionismo. Ele sente que deve continuar a pintar o que seus olhos veem e, atravessando as aparências, encontrar na própria realidade os sinais do seu significado. Aliás, o cristianismo que lhe é proposto no Movimento tem justamente a característica de evitar qualquer abordagem dualista: Cristo é a verdade do humano e, por isso, deve ser também da sua personalíssima vocação de artista. Congdon deixa de pintar sujeitos sagrados; exceto o Crucifixo, porque na imagem do Salvador que assume em seu corpo martirizado os sofrimentos do mundo ele “vê” a dor e a promessa da sua própria caminhada. Assim, a série de crucifixos – quase duzentos – se desenvolve durante anos, simplificando até ao essencial as formas e mostrando cada vez mais claramente o brilho dourado da ressurreição, que ilumina a escuridão da morte.
O barco de Congdon recomeça a viajar: África do Norte, Espanha, Terra Santa, Índia. Ele a chama de “segunda migração” e se torna uma contínua sugestão de novas imagens, de novas séries de quadros; mas agora o mundo artístico norte-americano se desinteressa dele, não é mais exposto e os críticos se calam; o mesmo acontece na Itália. Em relação à primeira temporada de viagens há, porém, como Bill escreve em seu diário, uma diferença radical: agora sabe que tem uma “casa” para onde pode voltar, uma companhia na qual – apesar de todas as suas rebeldias e as incompreensões alheias – pode encontrar apoio, consolo, correção.
Os anos passam e a velhice começa a pesar. “Começo minha última viagem parando”, escreve Congdon em 1979, depois de decidir se transferir definitivamente para Gudo Gambaredo, na plana zona rural do sul de Milão. Tem seu apartamento e estúdio no interior da Cascinazza, sede de uma comunidade de monges beneditinos, e participa da vida na casa dos Memores, ali vizinha. O fato de não ver mais as variadas belezas do mundo, mas só a aparente monotonia dos campos da Baixa milanesa, poderia parecer um sacrifício do seu dom artístico. Ao invés, abre-se surpreendentemente uma última e riquíssima fase criativa, da qual até a crítica mais atenta toma ciência. A quase imperceptível mutação cromática dos campos, o passar das estações na imponência das transformações que provoca, até o véu aparentemente aniquilador da neblina se tornam novas e poderosas imagens. A composição se torna cada vez mais harmônica, a paleta atinge cores incrivelmente tênues. E quando a artrose lhe impede de usar a espátula, Bill inventa a forma dos pequenos bastões (“pastel”) feitos com giz, nos quais cada linha é como que a voz inconfundível de uma harmonia cósmica. Congdon pinta até poucos dias antes de morrer, o que acontece dia 15 de abril de 1998, dia em que completava 86 anos.
A contemporânea obediência ao seu personalíssimo dom e à pertença eclesial lhe permitiu experimentar aquilo que diz o salmo: “Na velhice ainda darão frutos, serão exuberantes e vigorosos”.

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