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ARTE

Exemplo de uma convivência recorde

por Cezar dos Reis (*)
21/08/2012 - Músicos da orquestra Tabajara, formada na Paraíba em 1934, tocaram juntos por mais de 70 anos dirigida pelo maestro Severino Araujo, falecido recentemente

Nesse último 3 de agosto, faleceu o maestro Severino Araujo de Oliveira, pernambucano de Limoeiro, nascido em 1917.
Normalmente, quando a maioria se refere a grandes personalidades na área de regência de orquestras, os nomes citados são, quase sempre, do meio erudito, como por exemplo: Von Karajan, Toscanini, Zubin Mehta, Seiji Osawa, Leonard Bernstein, etc... Claro. No meio erudito as apresentações são marcadas pela perfeição e fidelidade na execução das obras, e pelo virtuosismo dos músicos. A grande qualidade sonora resultante do conjunto é sempre atribuída ao maestro responsável pela orquestra com a qual trabalha, as vezes um gênio desde jovem, outras vezes um gênio em maturidade e tempo de experiência. Com toda certeza, se não for genial, não será realmente um maestro, pois a música exige isso, no mínimo, para poder soar dignamente.

No caso do maestro Severino Araújo, sua orquestra é admirada por mais de sete décadas, porém de forma diferente, pois na música popular, os critérios não são os mesmos para se reconhecer os talentos, as qualidades, os efeitos e defeitos das execuções musicais. Na música erudita, tudo tem que ser tocado como está na partitura que o compositor escreveu. Nenhuma vírgula pode ser mudada.

Em uma orquestra dedicada a tocar arranjos de música popular, uma parte é fiel à partitura pois são escritos arranjos próprios para o repertório. Mas as interpretações não precisam seguir obrigatoriamente o mesmo critério, pois existe uma liberdade interpretativa para que os músicos adaptem sua execução aos estilos musicais populares, por exemplo, bolero, samba, rumba, blues, swing, frevo, etc...

Foi nesse meio, executando música popular, que o maestro Severino Araújo desenvolveu com a Orquestra Tabajara, desde 1938, uma maneira de interpretar a música popular que fascinou a todos que frequentaram os bailes onde eles tocaram, pois o som, o ritmo, a harmonia, a fluência, daquele grupo se tornou tão envolvente, que era impossível não ter vontade de dançar, assim como era impossível tirar da memória aquelas melodias durantes as semanas seguintes. Dessa mesma forma, a Orquestra Tabajara executou obras do repertório de jazz, as mesmas ouvidas nos USA, se igualando ao alto nível das melhores, praticamente imitando o som de Glen Miller, Tommy Dorsey, Count Basie, Harry James, e outras, pois entre nossos brasileiros haviam fantásticos solistas de sopro, incluindo o próprio Severino Araujo, exímio clarinetista.

Preciso esclarecer que senti muito a morte de Severino Araujo, pois desde criança conheci a admiração de meu pai por essa orquestra. Cheguei a apreciá-la ao vivo em São Paulo, sendo que, em 1988, ano do meu casamento, eu e minha noiva, atual esposa, comemos bolo de aniversário com o próprio Severino Araújo e seu pessoal, pois estavam comemorando, no Sesc Pompéia, em São Paulo, os 50 anos que eles tocavam juntos.
Um jovem chegou perto de mim e indagou: "Por favor, será que eu entendi? É isso mesmo? Faz 50 anos que a banda toca junto?" Eu respondi: "Pois é. É isso mesmo. Desde os 21 anos de idade esse maestro trabalha com eles. E nunca parou. "Ele ainda comentou admirado: "Putz! Isso foi antes da segunda guerra mundial!". Concordei com ele, dizendo que raramente se consegue isso.

Nessa mesma noite ainda tive a chance e a felicidade de conversar com o maestro Severino Araujo. Quando pedi para ver algumas partituras dos arranjos que eles tocaram, ele riu, deu uma olhada na pasta, e disse: "Olha, faz tempo que não levamos mais essas partituras. Eles sabem tudo de memória. Funcionam melhor que aparelho eletrônico. É só estalar os dedos e eles começam..." Ele ainda me convidou para que quando fosse ao Rio passasse em sua casa pois adorava conversar, mas na parte da manhã, porque... "à tarde eu já sou outra pessoa, não tenho a mesma paciência...". Nunca me esqueci disso. Infelizmente não moro no Rio de Janeiro e também não cheguei a ter essa chance.

Será que conseguimos imaginar o que é uma convivência pessoal, além de musical, de ensaios, viagens, bailes, eventos cívicos, etc... durante 70 anos? Você já se imaginou no trabalho, ter o mesmo chefe durante 70 anos? Só em 2006, por problemas de saúde, a regência da Orquestra Tabajara passou para Jayme Araújo, flautista e saxofonista há muitas décadas, irmão de Severino, mais jovem, com 84 anos. Não foi por desistência.
Maestro Severino se afastou para tratamento, mas ele continuava sendo o titular da orquestra. Mas em 3 de agosto de 2012, uma complicação com a infecção urinária provocou falência múltipla dos órgãos, e nós ficamos sem o nosso Severino Araujo, após 74 anos de convivência musical.

Por essa situação, não consigo deixar de sugerir a todos, para audição nesse mês, algum CD da Orquestra Tabajara. Não vou citar nenhum em especial, pois felizmente boa parte de sua imensa discografia foi reeditada em CD. Qualquer escolha será um grato exemplo, mais que isso, um motivo de orgulho por termos algo tão rico e competente formado por brasileiros, no Estado da Paraíba, em 1934, mas que impressiona o mundo todo até hoje
apenas pelo próprio talento, bom gosto e disposição para o trabalho.

Vamos ouvir a Orquestra Tabajara da mesma forma que ouviríamos o Beethoven ao vivo, ressuscitado hoje.
Para quem não conhece, uma grata surpresa.
Para quem conhece, uma grata lembrança.
Para quem conviveu, uma justa homenagem.

Boa audição

(*) Cezar dos Reis é maestro, escritor e professor

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