Bernard Berenson, o grande crítico de arte norte-americano, amante e profundo conhecedor da arte italiana, especialmente daquela do Renascimento, escreveu, com certo desaponto, em 1951, que a tela Sete obras de Misericórdia de Michelangelo Merisi, dito Caravaggio, era uma composição histérica, quase indecifrável, confusa e bagunçada. Hoje estamos mais propensos em considerar essa obra como uma das mais revolucionárias da história da arte. Ela ocupa também no lugar da trajetória estética de Caravaggio um espaço privilegiado. É uma obra de dimensões notáveis, quase quatro metros por mais de dois metros e meio, que foi comissionada a Caravaggio pela Congregação do Sagrado Monte da Misericórdia, congregação composta por jovens aristocráticos da cidade do Sul da Itália, entre os quais Luigi Carafa-Colonna, que protegeu o artista durante sua fuga de Roma. Com efeito, Caravaggio não podia se considerar um artista-santo... Após ter brigado violentamente com Ranuccio Tommasoni, protetor de prostitutas romanas, entre as quais, Lena, modela de muitas obras do pintor, e tê-lo assassinado, Caravaggio se vê obrigado a fugir para Nápoles, onde podia estar mais aliviado da caça da justiça romana. De Nápoles Caravaggio foge para a ilha de Malta, onde obtém a imunidade pois lá é eleito Cavaleiro da Ordem de Malta. Pinta o cavalheiro Alof de Wignancourt com seu pajem, mas é preso por ter ele aproveitado do pajem e novamente fica obrigado a fugir. Da Sicília, onde é perseguido pelos Cavaleiros de Malta, volta para Nápoles. Nesse período pinta as Sete Obras de Misericórdia.
Cidade rica economicamente e culturalmente, Nápoles é, naquela época, uma das capitais mais fervorosas e dinâmicas europeias, segunda só a Paris. Caravaggio adere ao projeto de uma pintura destinada ao altar mor da Igreja da instituição benéfica do “Piedoso Monte”. Ele não mostra, porém, as obras de caridade efetivamente realizadas pela instituição, mas opta para representar o pobre, o miserável, como objeto da caridade cristã. Caravaggio se opõe veementemente à ideia de que o pobre tem que ser excluído ou eliminado da sociedade, porque isso representaria um ensino contrário ao Evangelho. O pobre, o diferente, o não assimilável a uma ideia burguesa da sociedade, não era o objeto de uma mera beneficência laica, mas do mais profundo amor cristão (Ubi caritas, Deus ibi est).
As sete obras de misericórdia “corporal” que Caravaggio representou nessa tela são: 1) alimentar os famintos; 2) dar de beber aos quem têm sede; 3) vestir os despidos; 4) abrigar os sem abrigo; 5) visitar os doentes; 6) visitar os cativos e 7) sepultar os mortos.
A visão do pintor.. Caravaggio consegue realizar uma proeza, um verdadeiro virtuosismo iconográfico. Representar cada obra poderia ter obtido um tratamento singular e específico. Caravaggio, pelo contrário, reúne todas as sete obras numa única e originalíssima visão iconográfica. Sete fragmentos quase metonímicos: cada um deles reenvia e alude a citações bíblicas e evangélicas, o que deixa entender a erudição religiosa e a fé do pintor italiano. Além disso, Caravaggio tenta “confundir” o espectador, ambientando as sete obras de misericórdia num conjunto realista que parece ser derivado de uma cena popular de um dos bairros muito animados da cidade napolitana em aquela época. Mas, como se não bastasse, esse virtuosismo é, por assim dizer, “aumentado” pela presença milagrosa e divina da Nossa Senhora da Misericórdia com o Menino Jesus que, se, aparentemente, parece dividir a pintura em espaço sagrado e espaço profano, apresenta dois anjos que, mensageiros dos céus, quase se lançam para socorrer os personagens da cena. De certa forma, poderia ter tido razão Berenson em observar apenas confusão nessa representação sagrada. Porém, Caravaggio propõe um “deslocamento” do sagrado. É uma característica de toda a estética do pintor italiano: da Vocação de São Mateus à Crucifixão de São Pedro, da Nossa Senhora dos Peregrinos ao Descanso durante a Fuga no Egito, os sujeitos de Caravaggio parecem sofrer uma redução do sagrado: eles perdem a força iconográfica clássica a favor de fatores incomuns como pés sujos, ou de inquietantes chiaroscuros e dificuldades de compreensão catequética. Caravaggio prefere deslocar o sagrado para enaltecer o drama existencial de cada figura humana representada, mesmo se esteja se tratando de figuras divina como Nossa Senhora. Anulando o aspecto sagrado que uma certa tradição católica manifestava como poder indireto sobre os fieis, Caravaggio afirma a sacralidade de cada gesto humano, o mais modesto ou insignificante. O homem pode ser santo e sagrado, pois ele é chamado naturalmente à santidade, apesar de todos os erros. Longe de ser uma representação pictórica catequética, a pintura caravaggesca vê no caminho existencial de cada sujeito uma possibilidade de redenção: os mais humildes, os mais pobres seriam aqueles que, como todos, podem alcançar a salvação. A santidade e o desejo de salvação nunca são representados, em Caravaggio, fora da vida terrena. A precariedade humana faz parte das etapas de uma ascensão ou purificação a ser mais homens e mais mulheres, mais conscientes de um laço indissolúvel com o divino. Maurizio Calvesi, um dos maiores conhecedores do Caravaggio, afirma que o pintor italiano se aproximava ao espírito do Catecismo promovido, naquelas décadas, por São Roberto Bellarmino, o qual, seguindo os preceitos da Contrarreforma propugnava o retorno aos valores mais puros do Evangelho, em primeiro lugar, a prática da caridade como meio de expiação dos pecados e possibilidade de elevação espiritual.
Leitura da obra. Ao lado esquerdo do quadro, temos um grupo de quatro obras de misericórdia: vestir os despidos, dar de beber aos quem têm sede, visitar os doentes, e abrigar os sem abrigo. Tudo é perfeitamente concentrado: um jovem cavalheiro doa seu próprio manto a um homem seminu, em pose que lembra as pinturas e as esculturas de Miguel Ângelo; outro homem bebe de uma mandíbula de burro; um homem em pé indica um ponto externo ao quadro com outro que tem um chapéu com uma concha. Caravaggio aqui retoma lendas e historia da hagiografia cristã, facilmente reconhecível pelos mais simples e devotos católicos da época. São Martim de Tours é o cavalheiro que doa seu próprio manto, emblema de “vestir os despidos”, mas também de “visitar os doentes”, enquanto o chapéu com concha pode ser assimilado ao signo da peregrinação para Santiago de Compostela. Finalmente, o homem que bene de uma mandíbula de burro é uma citação bíblica em que se narra que Sansão, no deserto, conseguiu beber água, jorrada, por um milagre de Deus, justamente de uma mandíbula de burro. Diversamente dos outros personagens da tela, Sansão é o único que não está realizando uma “obra de misericórdia”, mas ele, salvado, é objeto particular da graça de Deus. Do ponto de vista simbólico, Sansão poderia ser considerado como o mais parecido com uma tentativa de autorretrato sentimental do próprio pintor na composição.
A parte central é misteriosamente deixada quase vazia, como se Caravaggio quisesse admitir que a mão do anjo possa enviar sua mensagem salvadora, num fragmento mínimo de escuridão que aspira a ser redimida.
A parte direita do quadro é, provavelmente, a mais dramática e teatral da composição de Caravaggio. A tela se completa com as últimas três obras de misericórdia: alimentar os famintos, visitar os cativos e sepultar os mortos.
As primeiras desse grupo de obras de misericórdia resumem um único episódio, relatado por Valério Mássimo em Factorum et dictorum memorabilium (IX, 4, ext. 1), exemplo de grande caridade romana (o conceito de pietas): Cimón é amamentado pela sua filha Pero, depois dele ser preso e condenado à morte por inanição. Pero será logo descoberta pelos guardas, mas o amor deste ato impressiona a justiça, que ordena a libertação de Cimón. “Sepultar os mortos” é representado de forma sintética e genial: vemos apenas um cadáver, transportado por um homem, de quem são visíveis apenas os pés, e, à distância, um diácono com uma tocha.
É justamente nos pés, esbranquiçados de morte, o elemento crucial da tela: é o caos misterioso e escondido da morte, representado sinteticamente por Caravaggio, que dá a possibilidade da redenção, evidenciada pelo nível superior do mundo celeste.
A humanidade viva, intensa, animada está observada pelo olhar misericordioso e pela presença silenciosa de Nossa Senhora e do Menino Jesus. Esse segundo nível não é apenas um mero discurso devido à comissão do quadro, mas é a convicção teológica de Caravaggio; a realidade quotidiana com suas atitudes físicas e morais, e suas escolhas boas e erradas, se complementam, numa visão espiritual típica do pensamento do artista, com o conteúdo dado pelo eixo superior que evidencia a intervenção do divino nos atos humanos.
Pareceria uma obra blasfema e violenta, mas é uma obra revolucionária. Ela condensa em si não apenas uma, mas múltiplas histórias. Não apenas sete histórias mas bem mais: a história divina, quase à parte, se cruza com as sete histórias humanas e com as histórias emotivas de cada espectador que se aproxima ao altar maior da Igreja do “Piedoso Monte”.
Os anjos. Caravaggio, como é costume do seu estilo pictórico, opera também nessa composição uma dialética dos contrastes: chiaroscuros, mundo divino e mundo terreno, o paraíso e o purgatório, a morte e a vida. Luz e sombra se intersectam nessa tela. As criaturas celestes observam as obras de misericórdia com atenção e compaixão para com os homens envolvidos. Os anjos parecem quase cair e, se bem olharmos, eles são semidivinos: a sombra de um anjo, como fosse figura humana, se reflete no muro da cadeia, e até uma asa toca as barras da prisão.
A tela mostra também outra revolução teológica por meio da pintura: se o divino é um acontecimento extraordinário que entra na vida humana, para Caravaggio o divino é uma dimensão que se revela por meio das ações humanas, pois cada gesto humano revela sempre o anseio do infinito.
(Texto publicado na edição 182, Passos julho 2016)
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