Vai para os conteúdos

ARTE

Manet, O Revolucionário

por Giuseppe Frangi
17/05/2017 - Um grande artista que aposta tudo numa palavra: experiência. Começando pelo quadro que dá início à arte moderna. Porque desloca o foco do sujeito para o acontecimento que ocorre quando alguém pinta
Édouard Manet
Édouard Manet

Se tivéssemos de fixar uma data para o início da arte moderna, poderíamos com razoáveis motivos tomar o ano de 1866. Naquele ano Édouard Manet, um artista parisiense, escapado de um clamoroso escândalo por ter apresentado em 1864, no tradicional encontro do Salon na capital francesa, o nu da Olympia, tinha vindo para frente com duas propostas pensadas como conciliadoras: entre elas havia o retrato de figura inteira de um menino em uniforme da guarda imperial no ato de tocar um pífaro. Um sujeito inocente, que deveria resultar totalmente aceitável para o público burguês do Salon. Entretanto também diante daquele quadro se renovou uma violentíssima oposição, a ponto de ter sido rejeitado pela comissão chamada a decidir quem deveria estar e quem não na resenha daquele ano.

Hoje quem olha o Le Fifre se pergunta onde estava o escândalo. Se, olhando o Olympia, podia-se supor que o nu resultasse inconveniente aos olhos dos bem-pensantes parisienses (mas de quantos nus femininos está cheia a história da pintura!), o menino em uniforme que toca o pífaro não se entende qual problema levantava. Evidentemente o escândalo não era representado pelo sujeito, mas por algo outro. E este “algo outro” concerne o DNA da pintura. Com Manet, de fato, ocorre um salto evolutivo vertiginoso, pelo que pode-se dizer que a partir deste ponto começou a arte moderna.

Para entender, é preciso observar por dentro com atenção esta obra-prima, deixando-se guiar pelo genial olhar de Michel Foucault. O grande filósofo ministrou, com efeito, uma série de memoráveis lições sobre Manet, reunidas depois em um livro. Foucault havia notado primeiramente um elemento muito elementar: Manet fez desaparecer o plano de fundo. Escreve Foucault: “Não há nenhum espaço atrás do piferaro; não só não há espaço atrás dele, mas em certo sentido parece não estar situado em nenhum lugar”. Os pés do menino, com efeito, não se apoiam sobre nada, porque o plano de fundo é um continuum neutro e tendencialmente todo vertical. O plano de fundo e a superfície da tela coincidem.

Ademais, Foucault notou outro fator que deve ter sido bastante desestabilizador: a luz não vem nem do lado direito nem do esquerdo, mas é rigorosamente frontal. Em particular, a luz não vem de uma fonte interna à pintura, visualizada explicitamente ou ao menos apenas sugerida, mas vem de fora do quadro; quiçá da janela aberta na sala em que o quadro mesmo está pendurado.

Em suma, depois de séculos de grande pintura que nos havia acostumado à ilusão de um espaço criado dentro da tela, Manet nos diz que aquela solução tinha esgotado todas as suas potencialidades. Toda a pintura que se via no Salon representava o epílogo meio patético de uma grande história (e com o olhar de hoje a coisa resulta em truísmo de óbvia evidência). Para dar outra chance, uma outra razão de ser à pintura, precisava, pois, cortar os laços. E a passagem não envolvia tanto os sujeitos, como o caso do O tocador de Pífaro bem demonstrava. Foucault escreveu que com Manet nasceu o “quadro-objeto”: um quadro no qual não é mais preeminente o conteúdo (logo, o sujeito), mas o acontecimento que ocorre ao pintá-lo. O quadro, enfim, é legitimado não por aquilo que representa, mas pela experiência densa, profunda que o fez ser.


Édouard Manet, "O tocador de Pífaro", 1866

Naquele ano de 1866 a história da pintura, portanto, tinha deixado para trás a terceira dimensão: tratou-se de uma evidência que tinha desarranjado a comissão e que foi, por isso, “poupada” ao público do Salon daquele ano, rejeitando o O tocador de Pífaro de Manet. Aquele quadro escapava de todas as categorias e continha algo de “inédito”. Poucos foram os que entenderam a novidade de Manet. Entre eles Émile Zola, que diante do quadro rejeitado pela comissão disse: “Não creio que é possível obter um efeito mais potente com meios mais simples”. Dois anos mais tarde, Manet iria realizar um retrato de Zola, exposto na mostra que encontra-se em Milão, que é uma bandeira da “nova pintura”: o escritor está em posição de três quartos, mas a configuração é propositadamente e violentamente “plana”, achatada. Sobre a mesa e na parede são colocados em evidência os novos pontos fixos: as estampas japonesas, uma gravura tirada de uma obra de Velázquez, uma reprodução da Olympia e a capa do livro combativo sobre o amigo pintor que Zola acabava de escrever.

Com Manet a pintura vive uma espécie de novo começo, que usa, porém, soluções sempre muito simples. Por exemplo, no percurso da mostra nos deparamos com um quadro histórico, pertencente à última fase do artista (que morreu aos 51 anos em 1883). É uma paisagem marítima pintada em 1880 que narra a lendária fuga de Henri Rochefort, intelectual liberal, um dos protagonistas da Comuna parisiense, da prisão sobre uma ilha perdida no meio do Oceano na Nova Caledônia. A tela é toda ocupada pelo mar; no centro se vê a embarcação dos fugitivos: mas o quadro, de fato, é projetado em uma dimensão de verticalidade, capaz de restituir uma tensão dramática que nenhuma exibição “em profundidade” jamais teria conseguido restituir. Como se o evento da fuga tivesse se transformado tal e qual em evento pictórico. O sujeito se torna, logo, para Manet um estímulo para ser ainda mais novo e audaz em relação ao próprio destino de pintor.

Para se entender completamente o alcance da revolução manetiana, na mostra há uma outra obra-prima. Intitula-se Le Balcon (1868); ali se veem três personagens, duas mulheres e um homem, olhando pela sacada ensolarada, provavelmente atentos a observar algum desfile. Como havia percebido mais uma vez Michel Foucault, as três figuras são jogadas sobre o contraste do branco deslumbrante do vestido das mulheres e do preto do homem, o qual sai do “buraco” escuro da sala: um escuro não natural, porque parece impermeável à luz forte, de um meio-dia de verão, que contudo dardeja frontalmente a tela. Foucault aventa a ideia de que, ao pintar Le Balcon, Manet tenha trabalhado sobre um dos grandes temas da história da pintura, o da ressurreição de Lázaro. A escuridão da sala seria a do túmulo e as duas mulheres seriam as irmãs, testemunhas luminosas do retorno à vida. Evidentemente não era intenção de Manet representar um semelhante sujeito. Aquele sujeito “acontece” ou “volta a acontecer” por uma dinâmica toda interna ao ato de pintar. Em um certo sentido se materializa como “experiência”, que é muito mais do que uma representação. Trata-se de uma dinâmica livre e gratuita graças à qual os grandes temas que estão no fundo da consciência humana (por exemplo o tema da liberdade ou o da morte) voltam à tona com modalidade totalmente imprevistas. E em certos casos, como Manet demonstra, com modalidades de magnífica beleza e “inauditas”.

Com Manet a história da pintura reinicia e abre amplos horizontes desorientadores, de tão extensos que eles são (pensemos, por exemplo, na pintura abstrata). A própria pintura religiosa, “libertada” da timidez de uma iconografia agora exausta e reduzida amiúde aos limites da oleografia, logrou, depois de então, experimentar inúmeros caminhos e linguagens novas que lhe restituíram vida. Por isto, quando nos encontrarmos frente até a uma simples e banal natureza morta morta pintada por Manet, tal como o pequeno, incrível Aspargos (1880), devemos ter a consciência de que estamos diante de um broto, de comovente beleza, de toda a arte que virá.

Outras notícias

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página