Fica cada vez mais evidente que não se pode dar por óbvia a maturidade do sujeito humano que se apresenta ao matrimônio. Independentemente da sua boa vontade, a realidade é que muitos jovens chegam ao casamento sem a consciência adequada da natureza da aventura que estão por ini-ciar. Essa consciência não pode ser considerada óbvia nem mesmo nos jovens cristãos, que muitas vezes chegam ao matrimônio em condições que não diferem das de seus amigos não-cristãos, com a única diferença de que se casam na igreja e têm um mínimo de desejo de se casar segundo a concepção do matrimônio que a Igreja defende e testemunha. Essa falta de consciência não pode ser remediada pelos cursos pré-matrimoniais que conhecemos, os quais, por sua própria natureza, não são capazes de dar resposta à situação daqueles que os freqüentam. É grande o desafio que se apresenta a toda a comunidade cristã: põe-se à prova a sua capacidade de gerar personalidades adultas, homens e mulheres capazes de se apresentar ao matrimônio com uma mínima perspectiva de um resultado positivo.
Numa palestra como esta, é impossível enfrentar toda a problemática do matrimônio e da família. Vou me concentrar numa questão que me parece essencial para esclarecer essa relação particular que se estabelece entre um homem e uma mulher.
A crise da família é uma conseqüência da crise antropológica na qual nos encontramos. De fato, os esposos são dois sujeitos humanos, um eu e um tu, um homem e uma mulher, que decidem caminhar juntos rumo ao destino, rumo à felicidade. A maneira como vivem a sua relação, como a concebem, depende da imagem que cada um faz da sua vida, da realização de si. Isso implica uma concepção do homem e do seu mistério. “A questão da justa relação entre o homem e a mulher”, disse Bento XVI, “afunda as suas raízes dentro da essência mais profunda do ser humano e pode encontrar a sua resposta só a partir dela. Isto é, não pode estar separada da pergunta antiga e sempre nova do homem sobre si mesmo: quem sou? O que é o homem?”1
Por isso, a primeira ajuda que se pode oferecer àqueles que se querem unir em matrimônio é a ajuda a tomar consciência do mistério que é ser homem. Só dessa maneira poderão focar adequadamente a sua relação, sem esperar dela algo que por natureza nenhum deles pode dar ao outro. Quanta violência, quanta decepção poderiam ser evitadas na relação matrimonial, se fosse compreendida a natureza própria da pessoa!
Essa falta de consciência do destino do homem leva a basear toda a relação num engano, que pode ser assim formulado: a convicção de que o tu pode tornar o eu feliz. A relação de casal, dessa forma, se transforma num refúgio, tão desejado quanto inútil, para resolver o problema afetivo. E quando o engano se manifesta, é inevitável a decepção pelo fato de o outro não cumprir a expectativa. A relação matrimonial não pode ter outro fundamento senão a verdade de cada um de seus protagonistas. É a própria relação amorosa que contribui de maneira particular para que se descubra a verdade do eu e do tu, e com a verdade do eu e do tu se manifesta a natureza da vocação comum.
De fato, “o mistério eterno do nosso ser” nos é revelado pela relação com a pessoa amada. Nada nos desperta, nada nos torna tão conscientes do desejo de felicidade que nos constitui, quanto a pessoa amada. A sua presença é um bem tão grande que nos faz perceber a profundidade e a verdadeira dimensão desse desejo: um desejo infinito. O que o poeta Cesare Pavese diz do prazer pode ser aplicado à relação amorosa: “O que o homem busca nos prazeres é um infinito, e ninguém jamais renunciaria à esperança de alcançar essa infinitude”2. Um eu e um tu limitados suscitam um no outro um desejo infinito e se descobrem lançados por seu amor rumo a um destino infinito. Nessa experiência se revela a ambos a própria vocação. Sentem a necessidade um do outro para não ficarem paralisados no próprio limite, sem outra perspectiva senão o tédio da solidão.
Mas, no mesmo momento em que se revelam a nós mesmos as dimensões sem limites do nosso desejo, nos é oferecida uma possibilidade de realização. Mais ainda: vislumbrar na pessoa amada a promessa da realização acende em nós todo o potencial infinito do desejo de felicidade. Por isso não há nada que nos faça compreender mais o mistério de sermos homens do que a relação entre um homem e uma mulher, como nos lembrou Bento XVI na encíclica Deus caritas est: “o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, [...] de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor perdem na cor”3.
Nessa relação o homem parece encontrar a promessa que o faz superar o próprio limite e lhe permite alcançar uma plenitude incomparável4. Por isso historicamente se percebeu uma relação entre o amor e o divino: “o amor promete infinito, eternidade – uma realidade maior e totalmente diferente do
dia-a-dia de nossa existência”5.
É experiência testemunhada pelo poeta italiano
Giacomo Leopardi em seu hino a Aspásia:
“Mulher, ao meu pensar se deparou
Qual um raio divino a tua beleza”6.
A beleza da mulher é percebida pelo poeta como um “raio divino”, como a presença da divindade. Por intermédio da sua beleza, é Deus que bate à porta do homem. Se o homem não compreende a natureza desse chamado, e em vez de segui-lo se detém na beleza que vê diante de si, logo ela se manifesta
incapaz de realizar a sua promessa de felicidade,
de infinito.
“Porém essa não é, e sim aquela
Que ainda nos amplexos corporais
Ama e venera. E conhecendo enfim
O equívoco e a troca dos objetos
Irado, em geral, erradamente,
À mulher pois a culpa atribui”7.
Isso significa que a mulher, com o seu limite, desperta no homem, ele também limitado, um desejo de plenitude desproporcional à capacidade que ela tem de respondê-lo. Suscita uma sede que não está em condições de extinguir. Suscita uma fome que não encontra resposta naquela que a despertou. Daqui vem a raiva, a violência, que muitas vezes surgem entre os esposos, e a decepção na qual vêm a cair, se não compreendem a verdadeira natureza da sua relação.
A beleza da mulher é na realidade “raio divino”, sinal que remete para além, para outra coisa maior, divina, incomensurável com a sua natureza limitada8. A sua beleza grita diante de nós: “Não sou eu. Sou somente um lembrete. Veja! Veja! O que é que lembro a você?”9. Com essas palavras o gênio de C. S. Lewis sintetizou a dinâmica do sinal, da qual a relação entre o homem e a mulher constitui um exemplo comovente. Se o homem não compreende essa dinâmica, cai no erro de deter-se na realidade que suscitou o desejo. É como se uma mulher que recebe um buquê de flores, arrebatada pela sua beleza, se esquecesse do rosto de quem o mandou para ela, e do qual esse buquê é sinal, perdendo o melhor que as flores traziam. Não reconhecer ao outro o seu caráter de sinal conduz inevitavelmente a reduzi-lo ao que aparece aos nossos olhos. Cedo ou tarde, o outro se manifesta incapaz de responder ao desejo que suscitou.
Por isso, se cada um não encontra aquilo a que o sinal remete, o lugar onde pode encontrar a realização da promessa que o outro suscitou, os esposos são condenados a serem consumidos por uma pretensão da qual não conseguem se libertar, e seu desejo de infinito, que nada como a pessoa amada desperta, é condenado a permanecer insatisfeito. Diante dessa insatisfação, a única saída que hoje muitos vêem é mudar de parceiro, dando início a uma espiral em que o problema é adiado até o momento da próxima decepção.
O poeta alemão Rainer Maria Rilke identificou com singular eficácia o drama da relação amorosa, intuindo que entrar nessa espiral não pode ser a única saída: “Este é o paradoxo do amor entre o homem e a mulher: dois infinitos se encontram com dois limites; duas exigências infinitas de serem amados se encontram com duas frágeis e limitadas capacidades de amar. E só no horizonte de um amor maior não se consomem na pretensão e não se resignam, mas caminham juntas rumo a uma plenitude da qual o outro é sinal”.
Só no horizonte de um amor maior é possível não se consumir na pretensão, cheia de violência, de que o outro, que é limitado, responda ao desejo infinito que desperta, pretensão que torna impossível a realização de si e da pessoa amada. Para descobrir esse amor, é preciso que a pessoa esteja disposta a seguir a dinâmica do sinal, permanecendo aberta à surpresa que essa dinâmica reserva.
Leopardi teve a coragem de correr esse risco. Com uma intuição penetrante da relação amorosa, o poeta italiano vislumbra que o que procurava na beleza das mulheres de que se apaixonava era a Beleza com B maiúsculo. No ápice da sua intensidade humana, o hino À sua dama é um hino à “cara beleza” que busca em cada beleza; todo o seu desejo é de que a Beleza, a idéia eterna da Beleza, assuma uma forma sensível10. É o que aconteceu em Cristo, o Verbo que se fez carne. Foi por isso que Luigi Giussani definiu essa poesia como uma profecia da Encarnação11.
Essa é a pretensão de Jesus, que encontramos em alguns textos que à primeira vista podem nos parecer paradoxais. “Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada. Com efeito, vim contrapor o homem ao seu pai, a filha à sua mãe e a nora à sua sogra. Em suma: os inimigos do homem serão os seus próprios familiares. Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim. E aquele que ama filho ou filha mais do que a mim não é digno de mim. [...] Aquele que acha a sua vida vai perdê-la, mas quem perde a sua vida por causa de mim vai achá-la. Quem vos recebe, a mim me recebe, e quem me recebe, recebe ao que me enviou” (Mt 10,34-37; 39-40).
Nesse texto Jesus se apresenta como o centro da afetividade e da liberdade do homem. Pondo a si mesmo no coração dos próprios sentimentos naturais, põe-se com toda a propriedade como sua raiz verdadeira. Dessa forma Jesus revela o alcance da promessa que a sua pessoa constitui para aqueles que o deixam entrar. Não se trata de uma ingerência de Jesus ao nível dos sentimentos mais íntimos, mas da maior promessa que o homem já pôde receber: sem amar Jesus, a Beleza que se fez carne, mais que a pessoa amada, esta última relação murcha, pois é Ele a verdade dessa relação, a plenitude à qual um remete o outro e na qual a sua relação se realiza. Só permitindo-lhe entrar é possível que a relação mais bela que pode acontecer na vida não se corrompa e, com o tempo, morra. Essa é a audácia da sua pretensão.
Neste momento aparece em toda a sua importância a tarefa da comunidade cristã: favorecer uma experiência do cristianismo como plenitude de vida para qualquer homem. Só no horizonte dessa relação maior, como dizia Rilke, é possível não se consumir, pois cada um encontra nela a sua realização humana, descobrindo em si uma capacidade de abraçar o outro na sua diversidade, de gratuidade sem limites, de perdão sempre renovado. Sem comunidades cristãs capazes de acompanhar e sustentar os esposos na sua aventura, será difícil, se não impossível, que eles a levem a realizar-se positivamente. Os esposos, por sua vez, não podem se eximir do trabalho de uma educação da qual são os protagonistas principais, limitando-se a pensar que pertencer à comunidade eclesial os liberte das dificuldades.
Nisso se revela plenamente a natureza da vocação matrimonial: caminhar juntos rumo ao único que pode responder à sede de felicidade que o outro suscita constantemente em mim, rumo a Cristo. Assim se poderá não passar, como a Samaritana, de marido em marido (cf. Jo 4,18), sem conseguir satisfazer a própria sede. Jesus fez com que ela percebesse que a consciência da sua incapacidade de resolver por si mesma o drama que vivia, nem mesmo mudando cinco vezes de marido, era um bem tão desejável, que ela não pôde evitar gritar: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede” (Jo 4,15).
Sem uma experiência de Cristo como plenitude do homem, o ideal do cristianismo para o matrimônio se reduz a algo impossível de se realizar. A indissolubilidade do matrimônio e a eternidade do amor parecem quimeras inacessíveis. Na realidade, elas são fruto de uma tal intensidade de experiência de Cristo, que surgem para os próprios
esposos como uma surpresa, como o testemunho de que “para Deus nada é impossível”. Só uma experiência assim pode mostrar a racionalidade da fé cristã, como totalmente correspondente ao desejo e às exigências do homem, também no matrimônio e na família.
Uma relação vivida assim constitui a melhor proposta educativa para os filhos, que, por meio da beleza da relação entre os pais, são introduzidos, como que por osmose, no significado da existência. Sua razão e sua liberdade são constantemente solicitadas a não se separar dessa beleza; a mesma beleza que resplandece no testemunho dos esposos cristãos que os homens e as mulheres do nosso tempo precisam encontrar.
(traduzido por Durval Cordas)
Notas
[1] Bento XVI, Abertura do Congresso Eclesial da Diocese de Roma sobre Família e Comunidade Cristã. In: www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2005/june/documents/hf_ben-xvi_spe_20050606_convegno-famiglia_po.html.
[2] Cf. Pavese, C. O ofício de viver. Tradução de Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1988, p. 209.
[3] Cf. Deus caritas est, 2.
[4] Deus caritas est, 4: “Os gregos – aliás, de forma análoga a outras culturas – viram no eros sobretudo o inebriamento, a subjugação da razão por parte de uma ‘loucura divina’ que arranca o homem das limitações de sua existência e, neste estado de transtorno por uma força divina, faz-lhe experimentar a mais alta beatitude. Desse modo, todas as outras forças, quer no céu quer na terra, resultam de importância secundária. ‘Omnia vincit amor – o amor tudo vence’, afirma Virgílio nas Bucólicas, e acrescenta: ‘et nos cedamus amori’ – rendamo-nos também nós ao amor”
[5] Deus caritas est, 5.
[6] Leopardi, G. “Aspásia”, vv. 33-34. In: Cantos. Tradução de Mariajosé de Carvalho. São Paulo, Max Limonad, 1986, p. 133.
[7] Id., ibid., vv. 44-48, pp. 133-134.
[8] Ct 8,6-7: “Grava-me, como um selo em teu coração, como um selo em teu braço; pois o amor é forte, é como a morte! Cruel como o abismo é a paixão; suas chamas são chamas de fogo, uma faísca de Iahweh! As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor... Seria tratado com desprezo”.
[9] Lewis, C. S. Surpreendido pela alegria. Tradução de Eduardo Pereira e Ferreira. São Paulo, Mundo Cristão, 1998, p. 224.
[10] Leopardi, G., “A sua dama”, vv. 45-47: “Se és uma das idéias imortais/ A quem sensível forma recusou/ A eterna sapiência...”. In: Cantos. Op. cit., pp. 88-89.
[11] O tema é enfrentado mais amplamente em: Giussani, L. Le mie letture. Milão, Rizzoli, 1996.
(Este texto foi publicado na edição de Passos n. 77/ novembro 2006)
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