Qual rico se salva? O fato de não faltarem pessoas abastadas e de classe elevada também entre os primeiros cristãos faz-se mais frequente à medida que o cristianismo se difunde em ambientes cultural e socialmente elevados. É o caso – por exemplo – de uma metrópole como Alexandria do Egito, famosa na antiguidade pelos seus comércios e pela difusão da cultura. Neste ambiente encontramos, na segunda metade do II século, a figura de São Clemente Alexandrino, teólogo profundíssimo como chefe daquela “escola alexandrina” que terá depois entre os seus responsáveis o gênio de Orígenes. De Clemente, entre outras obras, temos uma homilia com o título Qual rico se salva?, que é um comentário ao episódio evangélico do chamado jovem rico e que nos oferece uma reflexão de grande interesse sobre o tema da pobreza e da riqueza. Clemente se pergunta antes de tudo o que fez com que aquele homem fugisse de Cristo: «O que fez com que ele abandonasse o Mestre, a sua oração, a sua esperança, a sua vida, as fadigas antes de enfrenta-las? Vende tudo o que tens. Mas o que significa este preceito? Não certamente o que alguns pensam, entendendo ao pé da letra. Não comanda jogar fora o patrimônio que se possui e separar-se das riquezas, mas expulsar do coração todas as opiniões que circundam as riquezas: a inclinação à riqueza, o excessivo desejo, o ardente e mórbido apego, as inquietações, os espinhos da vida que sufocam a semente da vida».
Bens e desejo. Referindo-se à parábola do semeador, e, assim, pondo-se logo no nível da resposta da fé, Clemente mostra como não é suficiente pensar que uma obediência puramente “material” ao comando de Cristo possa ser por si garantia de salvação, e se pergunta qual é o específico cristão deste preceito. A sua resposta, que poderá surpreender alguém, merece ser ouvida: «Na realidade não constitui nada de grande nem de admirável ser certamente desprovidos de riquezas, sem pensar à vida eterna (pois em tal caso os que não têm absolutamente nada, mas, abandonados por todos, pedem esmola para viver dia a dia, os mendigos espalhados pelas ruas, os quais ignoram Deus e a justiça de Deus, seriam só por isto, ou seja, porque são absolutamente pobres e carecem do necessário para viver e têm falta das coisas mais ínfimas, seriam os mais bem-aventurados e mais queridos por Deus, e os únicos a possuir a vida eterna), nem é uma novidade rejeitar a riqueza e doá-la aos pobres ou à própria pátria; e muitos, antes que o Salvador descesse para o meio de nós, o fizeram, alguns para entregar-se completamente às meditações e para obter uma morta sabedoria, outros por uma fama vazia e por uma glória inútil...». Não devemos deixar-nos enganar pelo tom de Clemente: em suas palavras não há um desprezo intelectualista dos pobres, mas antes a intuição que afirmar uma salvação baseada unicamente (e automaticamente) sobre a indigência significa eliminar a liberdade, tornar desnecessária a adesão pessoal a Cristo, e portanto – ultimamente – julgar o pobre incapaz de reconhecê-Lo. E esta afirmação não era tão fora do comum no clima cultural que vivia, onde era forte a presença do gnosticismo, segundo o qual o que determinava ou não a salvação e a imortalidade era o pertencer a uma determinada categoria de pessoas, sem reconhecer algum papel à liberdade. Exatamente na afirmação do vínculo entre os bens e a liberdade pessoal encontramos, segundo Clemente, a verdadeira novidade cristã: «O que anuncia, pois, de verdadeiramente novo e próprio de Deus? (...) Anuncia desnudar a própria alma e a vontade de todas as paixões que estão nelas e erradicar e jogar fora da própria mente tudo o que lhe é alheio. É este, com efeito, o ensinamento daquele que crê; esta a lição digna do Salvador... já que também isto pode verificar-se: é possível que um homem, após ter se despojado de suas posses, conserve ainda exatamente como antes o desejo e a ganância de riquezas nele enraizada e inerente; é possível que jogue fora, sim, a riqueza, mas depois, encontrando-se em miséria e lamentando o que perdeu, fique duplamente aflito: quer pela falta daquilo que lhe servia, quer pela presença do arrependimento. É coisa irrealizável, com efeito, impossível que alguém, carecendo das coisas indispensáveis para viver, não fique de alma abatida e não se distraia das coisas superiores, enquanto tenta obtê-las de qualquer modo e de qualquer proveniência».
Caravaggio, Vocação de São Mateus.
O uso e o instrumento. A verdadeira pobreza, pois, é a pobreza de espírito, ou seja, aquela total entrega da vontade e dependência de Deus que é reconhecida como a atitude mais humana e razoável, ou seja mais apropriada à nossa natureza. Ao passo que é repudiado como inútil e prejudicial todo formalismo, ainda que chegasse ao despojamento de todos os bens, sem que haja, porém, esta fundamental conversão do coração e da razão (e é impossível aqui não perceber um eco do famoso Hino à caridade de São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios: «Se eu gastasse todos os meus bens no sustento dos pobres e até entregasse meu corpo às chamas, mas não tivesse amor, de nada me aproveitaria»).
Retomando outros trechos evangélicos, tais como a conversão de Zaqueu e a chamada de Mateus (a nenhum dos quais Cristo pediu para vender todos os próprios bens), Clemente mostra como o ponto crítico não é a condenação de toda forma de propriedade, mas a educação da liberdade: «Qual vida comum permaneceria entre os homens se ninguém possuísse nada? Como se poderia dar de comer a um faminto e dar de beber a um sedento e vestir um nu e hospedar um desabrigado (...), se cada um fosse o primeiro a encontrar-se privado de tais coisas? Não precisa, pois, jogar fora aquelas riquezas que ajudam também o próximo. Chamam-se de fato “posses” porque aptas a ser possuídas e se chamam “úteis” porque são utilizáveis e porque para a utilidade dos homens foram preparadas por Deus e são coisas submetidas a nós e feitas para nós, como qualquer matéria e como instrumentos para o reto uso por parte daqueles que sabem usá-los... também a riqueza é um instrumento desse gênero. Se você sabe fazer dela um uso reto, este lhe obtém a justiça; mas se você faz dela um uso injusto, eis que se revela como ministro de injustiça. Per sua natureza, com efeito, é apta a servir, não a comandar. Não se deve, pois, condenar aquilo que, por si mesmo, não comporta nem o bem, nem o mal e que é totalmente sem culpa, mas aquele elemento que pode fazer um bom e um mau uso das coisas e que, dependendo da escolha que faz, se torna responsável e causa da mesma. E este elemento é a mente do homem, a qual tem em si a liberdade de juízo e a livre escolha do uso das coisas dadas; de modo que não se prefira rejeitar as riquezas mais que as paixões da alma que não permitem o uso melhor dos bens possuídos... Portanto, o renunciar a tudo o que se tem e o vender tudo o que se possui deve ser entendido deste modo, como disséssemos: livrem-se das paixões da alma».
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