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HISTÓRIA

Abertos a tudo o que há de humano

por Marina Massimi
08/01/2011 - “Se existe uma experiência de maturidade humana, é justamente a capacidade de penetrar no passado, de aproximar-se do distante como se fosse próximo, como se fizesse parte de si”
Henri Matisse. <em> Ícaro</em>, em <em>Jazz</em>, 1947.
Henri Matisse. Ícaro, em Jazz, 1947.

Este artigo é o primeiro de uma série de contribuições que objetivam ajudar quem quiser percorrer o caminho fascinante e árduo do estudo da história. Queremos assim reaprender uma capacidade humana que, em muitos casos, nos foi tirada pelas influências da mentalidade típica do poder dominante, inclusive através do ensino nas escolas e universidades. Com efeito, na história da educação no nosso país, a redução da carga horária destinada ao ensino da história nas escolas e a estruturação de uma modalidade ideológica e facciosa de transmitir os fatos históricos têm sido instrumentos privilegiados para destruir a memória e a cultura do povo brasileiro. Reapropriar-se da história significa então reapropriar-se da própria identidade, da própria capacidade de memória do passado e de protagonismo do presente.

1. Por que vale a pena estudar a história
“Como uma pessoa pode-se interessar pela história num momento em que os homens pisam na Lua?” Assim a historiadora francesa Régine Pernoud se refere a uma pergunta muito comum hoje, à qual responde: “A resposta é fácil. (...) A história é a vida (...), é a procura do vivido a partir do qual nós vivemos a nossa própria vida”. E “a história é vida, precisamente porque ela comporta um dado, qualquer coisa que preexiste nos nossos conceitos, nos nossos preceitos, nos nossos sistemas”. (Pernoud, R., O Mito da Idade Média. Lisboa, Publicações Europa-América, 1978, p. 152-153). Assim, uma cadeira, um computador, nossa mãe, todo e qualquer objeto ou pessoa do nosso cotidiano nos são dados, nos vêm da história. E todo e qualquer lugar onde pisamos, desde a avenida da metrópole barulhenta até a praia deserta, é um lugar da história, um lugar onde outros, muitos, antes de nós, pisaram, construíram, sofreram e amaram, nasceram e morreram. Então, nada há em nossa vida que seja alheio à história, fora da história. Nós mesmos somos seres históricos, o nosso presente se inscreve num fluxo que vem do passado e enraíza o futuro.
Adquirir a consciência disso significa aprender a amar a nós mesmos e ao nosso destino de uma maneira mais profunda, significa compreender no amor a nós mesmos toda a humanidade que nos precedeu e nos gerou, e também nos darmos conta de que nós somos construtores da história, protagonistas da longa viagem do homem que através do tempo busca a eternidade.

2. A origem do trabalho histórico
O trabalho histórico é a atitude humana que visa preservar e compreender o passado, pessoal, da própria família, ambiente e sociedade. Nesse sentido, é uma atitude própria de cada ser humano e é uma atividade exercida por cada um de nós, mesmo sem nos darmos conta.
Como vimos, a nossa referência ao passado é contínua em cada instante de nossa existência. Todos os objetos dos quais nós dispomos no nosso dia-a-dia - desde o copo até a bicicleta ou o aparelho de som - são fruto de uma história, bem como tudo o que nós sabemos nos é transmitido por um passado mais ou menos longínquo.
A atitude do trabalho histórico é possível pelo fato de que somos possuidores de uma memória. A memória é a capacidade racional do ser humano através da qual o passado torna-se disponível para ele, como num grande armazém ou palácio (para parafrasearmos uma expressão utilizada por Santo Agostinho nas Confissões), que contém sinais de tudo o que foi vivido por nós e por nossos ancestrais.
Duas são as modalidades em que a memória humana realiza o trabalho histórico: a da memória coletiva e a da memória histórica propriamente dita.
As festas e as comemorações profanas e religiosas, os aniversários na vida de uma família ou de uma comunidade, o significado atribuído a um determinado objeto, monumento ou lugar por uma específica realidade social são expressões da existência da memória coletiva. A memória coletiva é descrita por M. Halbwachs, desse modo: qualquer grupo humano, família, comunidade ou conjunto social mais amplo, continuamente articula e localiza as lembranças dos acontecimentos vivenciados dentro de “quadros sociais comuns”. Isto permite que ao longo do tempo, este grupo disponha de um patrimônio cultural e social comum, de “um acervo de lembranças compartilhadas”. (In: Mahfoud, M. “Folia de Reis: Festa Raiz ou Experiência Religiosa em Comunidades da Estação Ecológica Juréia-Itatins na perspectiva da Psicologia Social Fenomenológica”. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, USP, 1996, p. 188). Então, para todos nós, o reconhecimento e a reconstrução do passado acontece não como se fôssemos indivíduos isolados no tempo e no espaço mas enquanto pertencemos a um determinado grupo social. Assim, por exemplo, a partir do sacrifício de Cristo, a Cruz, anteriormente sinal de ignomínia e castigo, adquiriu um significado novo e peculiar aos olhos da primeira comunidade dos discípulos, primeiramente, e da Igreja universal, depois - significado este que, para os cristãos, transmite-se de geração em geração ao longo dos séculos. Por isso, nós hoje veneramos a Cruz como sinal da morte e da ressurreição do Deus feito homem.
Por outro lado, a memória coletiva resgata fatos e objetos do passado não através da repetição linear destes acontecimentos e vivências, mas sim no contexto de um quadro de preocupações e interesses próprios do nosso presente. Nesse sentido, a memória coletiva tende a transformar os fatos do passado, de modo a estabelecer uma continuidade entre o passado e o presente e reconstituindo assim a unidade entre os acontecimentos. Assim, a celebração da festa do Natal, a cada ano, estabelece um nexo entre o nascimento de Jesus de Nazaré há dois mil anos e o tempo presente, com toda a sua densidade e atualidade.
Portanto, é o exercício da memória coletiva que atribui vitalidade a objetos culturais e a momentos significativos do passado, preservando, no presente, o valor de acontecimentos que de outro modo correriam o risco de morrer ou de permanecerem desconhecidos. Foi assim, por exemplo, que a comunidade cristã transmitiu sua tradição ao longo dos séculos.
Por outro lado, porém, existem “rupturas” entre o passado e o presente: por exemplo, muitos fatos de minha infância já desapareceram da minha memória, uma conversa com meu avó me faz perceber que o mundo dele não é mais o meu, percorro as ruas da minha cidade e admirando um antigo edifício abandonado dou-me conta de que nunca mais poderei conhecer seus moradores, as vozes e os acontecimentos que foram vivenciados entre aquelas paredes belas e silenciosas. Grande parte do que se passou ficará desconhecida para mim e o que está presente aos meus olhos nunca poderá revelá-lo. Ao deparar-se com esta experiência de “ausência” que caracteriza a condição humana, a memória histórica propriamente dita busca “preencher os vazios” e solucionar as rupturas entre o passado e o presente, proporcionando uma reconstrução lógica e inventada do passado. A historiografia é o exercício desta atitude, tornado sistemático e ordenado por regras metodológicas, instrumentos técnicos e objetivos culturais determinados. Nesse sentido, é a atividade própria dos especialistas que fazem da reconstrução histórica o objeto de seus estudos e de seu ensino.
De que forma a memória exerce o trabalho histórico e fundamenta a pesquisa historiográfica? Como ela pode reconhecer seus objetos e “dialogar” com eles?
Reconhecer algo significa estabelecer uma comparação entre mim e este “algo”, ou, em outros termos, emitir um juízo acerca dele, identificando seu significado e valor, a partir de um critério possuído por mim através do qual eu olho para a realidade e construo minha experiência.
Eu só posso apropriar-me do passado se este contiver algo que eu reconheço como “meu”. Então, o conhecimento do passado baseia-se num trabalho de comparação através do qual eu chego a alcançar no “outro”, num ser distante temporal e espacialmente, a minha mesma “experiência elementar” que me faz “um”, comunhão com ele: “Eis por que o critério fundamental para se enfrentar as coisas é o critério objetivo com o qual a natureza lança o homem na comparação universal, dotando-o daquele núcleo de exigências originais, daquela experiência elementar com que todas as mães dotam, do mesmo modo, os seus filhos (...). A exigência da bondade, da justiça, da verdade, da felicidade constituem o rosto último, a energia profunda com a qual os homens de todos os tempos e de todas as raças abordam tudo, a ponto de poderem viver entre si um comércio de idéias e não apenas de coisas, e de poderem, assim, transmitir um ao outro riquezas a distância de séculos. E nós lembramos com emoção frases criadas há milhares de anos por antigos poetas, que nos dão a impressão de estarem referindo-se ao nosso presente, de uma maneira tal como muitas vezes não ocorre nos relacionamentos quotidianos. Se existe uma experiência de maturidade humana, é justamente esta capacidade de penetrar no passado, de aproximar-se do distante como se fosse próximo, como se fizesse parte de si. Por que isto é possível? Porque tal experiência elementar, como dizíamos, é substancialmente igual em todos, mesmo que depois seja determinada, traduzida e realizada de maneiras muito diversas, até mesmo aparentemente opostas” (Giussani, L. O Senso religioso. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1988 [2ª ed.], p. 24-25).
O reconhecimento da experiência elementar comum a mim e ao outro é o fator que torna possível, no trabalho histórico, a atenção, a sintonia e a descoberta do valor de cada detalhe, de cada acontecimento, pois em cada detalhe e acontecimento, mesmo pequeno e muito distante de nós, vibra esta mesma experiência.
O grande historiador holandês, Johan Huizinga, autor do clássico O Declínio da Idade Média, ao descrever seu trabalho de historiador, revela-nos que a atitude intelectual necessária para o conhecimento histórico é, na realidade, expressão da mais geral exigência humana de conhecer e preservar as coisas do passado. Com efeito, todos nós desejamos que nada do que vivemos e gostamos se perca e desapareça de nossa consciência: um encontro significativo, a visão de uma pessoa linda, uma tarde agradável, um panorama encantador... Por isso, aliás, tiramos fotos e escrevemos diários. Mas por que vale a pena conservar a recordação do instante passageiro? Pelo valor que ele carrega. A exigência de preservar o que passou depende então do reconhecimento do valor infinito de cada instante, de cada detalhe, e este reconhecimento - diz Huizinga - por si mesmo tem uma natureza religiosa. Nesse sentido, também o trabalho do historiador é uma experiência religiosa, e é tanto mais consciente de si quanto mais reconhece esta dimensão: “O anseio direto, espontâneo, ingênuo de conhecer as coisas antigas dos tempos passados, (...) não apenas é a forma primária mas também é uma forma muito digna e valiosa de alcançar o conhecimento histórico. É o impulso que nos move a conhecer o passado. Quem se deixar guiar por ele talvez chegue a compreender apenas um pequeno retalho, uma conexão insignificante do passado, porém o impulso em si mesmo pode ser tão profundo e puro, tão cheio de promessas enquanto saber autêntico quanto o saber de quem pretenda abarcar em seu conhecimento o céu e a terra. Por acaso, para o homem religioso, qualquer trabalho, por humilde que seja, não tem valor para servir e honrar a Deus?
Por isso, quem investiga um detalhe não precisa justificar a importância científica de seu trabalho (...). A verdadeira justificativa é mais profunda (...). Pelo simples fato de polir somente uma faceta entre mil e milhões delas, ele é útil à historiografia de seu tempo. Estabelece um contato vivo com um passado autêntico e prenhe de conseqüências. Em sua devoção às coisas mortas de ontem, vê brotar verdades pequenas, porém vivas, cada uma delas sendo tão preciosa e tão terna como uma planta que se cultiva com amor” (Huizinga, J. El concepto de la historia. México, Fondo de la Cultura Económica, 1992, pp. 16-17. [trad. nossa]).
Outro historiador contemporâneo, Ph. Ariés, ao criticar a pretensão objetivista do positivismo, que tornara a história um processo mecânico regido por leis inexoráveis, identifica a atitude autêntica do homem frente ao conhecimento histórico com a posição simples e ingênua de uma criança. Para esta, “o passado parece algo diferente, mas infinitamente desejável, um reflexo da doçura de viver, uma imagem da felicidade. A felicidade está atrás dela. É preciso que a descubra. Esta busca reveste-se a seguir de um caráter religioso: é uma procura da graça. (...) Deus estava no passado que tentávamos alcançar. Não seria preciso pressionar-me muito para me fazer reconhecer em minha comunhão com o passado minha mais antiga experiência religiosa” (Ariés, Ph., O Tempo da História. São Paulo, Alves, 1989, pp. 42-43).
Um aspecto desta experiência é o fato do passado não ser algo artificialmente reconstruído e distante da pessoa, mas uma ausência presente na vida quotidiana: “Ao se afirmar, a busca do passado tornou-se a preocupação de apreendê-lo em sua totalidade. (...) Ele permanecia na vida corrente, nas conversas de família, também vibrava no fundo de mim mesmo” (Idem, ibidem)
A partir destas considerações, Ariés deriva sua concepção mais geral do trabalho histórico. Trata-se da experiência de uma comunhão misteriosa e real: “Ou efetivamente a história é um movimento elementar, inflexível e sem amizade, ou então existe uma comunhão misteriosa do homem na história: a apreensão do sagrado imerso no tempo, um tempo que seu progresso não destrói, onde todas as épocas são solidárias.
Eu me pergunto se, no término de sua carreira, o historiador moderno, depois de ter superado todas as tentações da ciência que disseca e do mundo que solicita, não termina com uma visão da história muito próxima da experiência infantil: a continuidade dos séculos, cheios de existência, mostra-se-lhe sem profundidade, sem extensão, como uma totalidade que descobrimos de uma só vista de olhos. Só que sua visão não é mais a da criança, porque a criança não consegue abarcar todo o conteúdo da existência humana. Sua totalidade é falsa e abstrata. Ela guarda porém o valor de uma indicação, de uma tendência. Ela sugere também que a criação histórica é um fenômeno de natureza religiosa.
Na sua visão das épocas amontoadas, reunidas, o cientista, liberto de sua objetividade, sente uma alegria santa: algo muito próximo da graça” (Idem, ibidem).
H. I. Marrou, historiador francês entre os mais notáveis do século XX, define, em seu texto clássico Sobre o Conhecimento Histórico, a história como “o encontro de outrem”, e por isso a atitude do historiador deve ser determinada pela “preocupação de estarmos atentos e como que receptivos ao objeto e, antes de mais nada, a esse documento que o revela.” (Marrou, H. I. Sobre o Conhecimento Histórico. Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p. 81). Nesse sentido, o historiador deve possuir em sua experiência humana e em sua bagagem cultural a abertura para “imaginar, sentir, compreender os sentimentos, as idéias, os comportamentos dos homens do passado com que virá a se deparar nos documentos” (Idem, p. 82). Por isso, conclui Marrou, “o valor do conhecimento histórico é diretamente função da riqueza interior, da abertura de espírito, da qualidade da alma do historiador que o elaborou” e por isso “o historiador deve ser, antes de mais nada, um homem na plena acepção da palavra, aberto a tudo o que há de humano” (Idem, p. 83).
É a dinâmica que Giussani descreve ao apontar as qualidades necessárias para obter conhecimentos certos acerca do comportamento humano: a atenção aos sinais que nos transmitem a vida do outro, e a “queda pelo humano”, ou seja aquela capacidade de ser “poderosamente homem” pela qual o sujeito, ao deparar-se com a realidade, exerce continuamente “uma comparação rápida consigo mesmo, com a própria experiência elementar, com o próprio coração” (Giussani, L. Op. cit., p. 38).
Em suma, a capacidade de conhecimento histórico é diretamente proporcional à experiência vivida do senso religioso. Conforme reza uma poesia de Murilo Mendes: “(...) é preciso consumir o tempo/ situando-se o homem no infinito íntimo/ que o tempo não atinge na sua essência,/ (...) o infinito íntimo, que registra o passado, o presente, o futuro/ e que os transcende” (“Primeira Meditação”. In: Mendes, M. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, pp. 771-772).

3. E agora vamos experimentar...
Um documento é qualquer sinal (escrito, material, iconográfico) que nos transmita o conhecimento de um acontecimento do passado.
Minha proposta é a de que você, com seus amigos, escolha algo e o encare como “documento histórico” (pode ser uma carta, um trecho de poesia, ou de literatura, um quadro, uma fotografia, ou um artigo de jornal, que se refiram a um acontecimento do passado). Comecem, então, a considerar este “documento” assumindo o “olhar” acima descrito, realizando a comparação entre a experiência de vocês e aquela que o documento lhes transmite, conforme Giussani descreve no trecho de O Senso Religioso acima transcrito. Está aberto o nosso diálogo: aguardo a sua contribuição!

*Este texto foi publicado na revista Litterae Communionis, em março 1997.

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