Vai para os conteúdos

HISTÓRIA

O cotidiano na Terra de Santa Cruz

por Marina Massimi
01/03/2011 - Continuando o itinerário que iniciamos nos dois textos anteriores para uma retomada mais rica do estudo da história que revele cada vez mais o seu interesse pela nossa humanidade

Em muitos casos, fomos acostumados a entender a história como o relato de acontecimentos políticos, econômicos ou culturais muito relevantes, ou como a narrativa das vidas e das obras de grandes homens que foram atores da cena da vida política de um determinado país e época histórica. Todavia, atualmente, desenvolveu-se na historiografia uma linha de pesquisa muito interessante dedicada à reconstrução histórica da vida quotidiana dos homens ao longo da história. Esta abordagem é inspirada por uma concepção da história que valoriza a experiência humana enquanto tal como protagonista da história: cada pessoa, com efeito, é sujeito construtor da história através de sua vida quotidiana. Todos nós somos envolvidos ativamente no processo histórico.
Nessa perspectiva, propomos aqui a leitura de uma obra recentemente publicada, Navegadores, Colonos, Missionários na Terra de Santa Cruz (São Paulo, Loyola, 1997). O livro enfoca a experiência quotidiana vivenciada no Brasil do século XVI, notadamente o encontro, a convivência, o choque entre experiências sócio-culturais diferentes presentes naquele contexto, tendo como ponto de partida os relatos epistolares elaborados por alguns dos atores desse processo: portugueses que viveram e escreveram sua cartas do Brasil, ao longo daquele século.
A Terra de Santa Cruz, para os homens portugueses do século XVI, era, de fato, um desafio gigantesco, campo de uma aventura árdua, às vezes com resultados trágicos. Para todos eles, o encontro com imprevistas e novas modalidades de expressar a experiência humana, por um lado, levava-os a reconhecer a peculiaridade e a particularidade de suas vivências e de suas histórias no âmbito da humanidade e, por outro, abria-os a um novo tipo de conhecimento, de ação, de relação social, na tentativa de tornar "própria" a diversidade com que se deparavam. Tratava-se de homens que, em contato com um mundo para eles novo, desconhecido, ameaçador ou agradável, procuraram observá-lo, conhecê-lo, torná-lo sua morada, seu lugar de vida e de construção.
Hoje, como então, o Brasil - e, por que não dizer, o mundo - são cenários de inúmeros encontros e desencontros entre grupos sociais, povos, etnias, num contexto complexo onde a força e o alcance dos modernos meios de comunicação eliminaram muitas barreiras, ao mesmo tempo em que multiplicaram as oportunidades de contato e de choque com o que é diverso, inusitado, estranho para nós. Apesar do processo de homologação cultural ser cada vez mais invasivo, em todos os níveis de nossa vivência pessoal e social, não deixamos - no entanto - de experimentar o impacto da diversidade. Muitas vezes nós mesmos nos sentimos estrangeiros em nosso próprio mundo da vida cotidiana, modificado bruscamente pela revolução da mídia, da informática, da Internet, das telenovelas...
É importante que nos debrucemos para observar e compreender esta nossa experiência. Provavelmente o passado longínquo possa iluminar seus fatores constitutivos, possa indicar caminhos para assumi-la, de modo que não nos alienemos. Possivelmente, a história de quem já passou nos ajude a descobrir como o nosso eu, a nossa identidade, podem permanecer e crescer no encontro com o que é alheio, testemunhando-nos que é possível “a busca de quem somos, na distância de nós” (Fernando Pessoa).
Ao abordar a experiência histórica que descrevemos antes, o livro ressalta a diversidade de três formas de contato e permanência dos portugueses no contexto da "nova terra", ao longo do século XVI: a temporânea e breve dos primeiros viajantes, observadores atentos e cheios de surpresa pela nova realidade com que se deparavam; a condição dos que estabeleceram sua residência nos territórios ocupados, em qualidade de colonos e funcionários régios, devendo realizar suas funções (econômicas, políticas e sociais) em vista do projeto colonial; enfim, a dedicação definitiva dos missionários, visando a cristianização dos índios. Estas diversas formas de contato e de permanência na Terra de Santa Cruz determinaram três diferentes modalidades de elaboração do conhecimento da realidade social, ao mesmo tempo em que implicaram tipos diferentes de relação com esta. Trata-se, em suma, de três maneiras de vivenciar a condição de estrangeiro.
Quem chega na nova terra - na condição de viajante -, assume o papel de um observador, o qual dirige para a realidade encontrada um olhar, em alguns casos, cheio de surpresa e curiosidade pelas novidades desvendadas e, em outros, perturbado pelo medo, mas, em todos os casos, descompromissado com relação ao novo ambiente em que se encontra. A realidade social do outro, o índio, é encarada de modo parcelado, exterior e imediato, enfatizando-se os aspectos que mais rapidamente ressaltam de um primeiro contato, não tendo em vista formular um juízo de valor, nem visando o estabelecimento de relações permanentes com aquela pessoa. Trata-se de estrangeiros que mantiveram com o contexto social brasileiro um contato direto e rápido, sem que este contexto representasse para eles um campo de ação e de interação estável.
Os portugueses que no Brasil instalaram-se de forma permanente - colonos régios e missionários - optaram por estabelecer sua residência no Brasil, de forma mais ou menos estável, e, portanto, encontram-se na necessidade de enfrentar a realidade social da nova terra como o campo central de suas ações e de suas obras.
Apesar de serem ambos os grupos motivados pela intenção de morar nos novos territórios, os elementos diferenciadores - do ponto de vista da dinâmica social - entre a condição dos colonos e a dos missionários (os padres jesuítas que chegaram ao Brasil em 1549) são vários.
Em primeiro lugar, os colonos pertencem a grupos sociais de referência mais ou menos definidos: a família de origem, que em vários casos acompanha-os na Colônia, o mundo sócio-político da Metrópole, em particular o Rei e seus conselheiros, de cujas decisões dependem “a distância”, e os eventuais sócios no empreendimento econômico a ser realizado na Colônia. Nem sempre, porém, o grupo de referência é co-responsável pelo projeto e pela ação dos colonos no novo ambiente social, uma vez que a distância geográfica e o desconhecimento, na Pátria, das reais condições de vida na Colônia tornam abstrata e inviável a relação e cada vez mais precária a comunicação.
Na condição do missionário jesuíta, pelo contrário, o grupo social de referência - constituído pela companhia religiosa à qual este pertence - se faz concretamente e ativamente presente na vida cotidiana, visando a construção do projeto comum, uma vez que nunca o sujeito vive e atua sozinho. De fato, a Companhia de Jesus estrutura-se em níveis hierárquicos que compreendem a pequena comunidade dos que compartilham da mesma missão numa determinada circunstância e ambiente (uma comunidade formada pelo menos de dois membros), os companheiros atuantes em outras regiões do Brasil e do mundo, os Padres Provinciais e Visitadores, até chegar aos responsáveis últimos da Companhia, em Lisboa e em Roma. Com todos estes níveis da Companhia, cada um tem ligações: trata-se de relações diretas com os mais próximos e de relações epistolares com os mais distantes. Desse modo, o apoio para a ação fornecido pelo grupo de referência é constante e utiliza-se de recursos múltiplos e diversificados.
Em segundo lugar, o interlocutor encontrado no novo campo social, o índio, ocupa a priori uma posição diferente no plano de ação do colono e no do missionário: o colono tem como objetivo principal a construção de uma obra de natureza econômica (fazenda, ou engenho), ou política (a organização do governo da Colônia, a constituição do corpo social), ou administrativa, em relação à qual o índio ocupa uma posição periférica e, na maioria dos casos, meramente instrumental. Ao contrário, para o jesuíta, o nativo é o alvo principal da ação, pois a cristianização e a educação deste constituem-se no objetivo principal do projeto proposto e realizado.
Em suma, deparamo-nos aqui com três maneiras diferentes de chegar e instalar-se num contexto social totalmente novo e estranho.
De que maneira nos será possível apreendermos a experiência vivenciada por eles num passado tão longínquo? De que modo esta coisa vivida nos alcançará hoje?
Os próprios protagonistas desta aventura, talvez pela sua própria condição de estrangeiros, elaboraram modalidades de comunicação que - úteis naquela época para manter ou reatar as relações com seus lugares de origem - permitem-nos hoje o conhecimento e de alguma forma a compreensão de suas vivências, através da própria narração dos atores.
As cartas - cuidadosamente escritas e remetidas à terra de origem, sem certeza de que alcancem seu destino final, relatos breves ou detalhados, esperançosos ou trágicos, sempre dramáticos - constituem-se na ponte que aqueles homens tentaram estabelecer entre um mundo que era seu, conhecido e familiar - mas atualmente longínquo - e uma realidade estranha, desconhecida, fascinante e muitas vezes hostil - o aqui-e-agora.
Concretamente, foram pesquisados cento e sessenta e três documentos, de caráter epistolar, reagrupados em três tipos, conforme seus conteúdos expressem uma das três modalidades de interação e contato com o novo contexto social a que nos referimos.
Um primeiro grupo de documentos compreende relatos de sujeitos que vivenciaram a realidade brasileira por um breve espaço de tempo: são eles viajantes e navegadores, tais como Pero Vaz de Caminha, autor da famosa Carta ao Rei Dom Manuel, do anônimo Piloto português, cujo relato fora escrito na mesma ocasião do descobrimento da nova terra, de Pêro Lopes de Sousa, cuja Relação de Navegação, elaborada entre 1530 e 1532, relata a viagem de reconhecimento das costas brasileiras, realizada em companhia de seu irmão Martim Afonso.
Um segundo grupo de cartas inclui quarenta documentos redigidos por vinte e dois autores, os quais se referem à experiência dos que vieram ao Brasil para realizar tarefas administrativas ou políticas, ou um plano de expansão econômica, autores que são definidos propriamente como “colonos”.
Um terceiro conjunto de correspondência epistolar é constituído pelas cento e vinte cartas escritas por trinta e quatro padres e irmãos jesuítas que vieram ao Brasil para realizar o ideal missionário de evangelização dos nativos e de cristianização do corpo social da Colônia, autores que são definidos ao longo do texto como “missionários”.
Tais documentos, além de serem relatos ricos de informações, testemunham assim a experiência subjetiva de quem escreve, através da reflexão sobre o mundo da vida em que ele se situa. Neles, os acontecimentos históricos são representados pelo prisma dos olhos e da linguagem de testemunhas que vivenciaram tais acontecimentos como partes de suas biografias, Nesse sentido, possibilitam-nos compreender relações, atitudes, sensibilidades e emoções daqueles homens em seu determinado contexto histórico.

Outras notícias

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página