Em 1971, Burale era um menino de dez anos que corria descalço pelas ruas de terra batida. Olhos grandes e negros, cabelos crespos, pernas longas e finas. Um sorriso daqueles que se veem apenas na África. O vilarejo se chama Kiringye, no Zaire (hoje, República Democrática do Congo), quatrocentas almas e um punhado de cabanas de palha e lama no meio da savana. Os Memores Domini que moravam ali, logo notaram o jovenzinho: era esperto e confiável. No início, trabalhou como intérprete no mercado. Aos 14 anos, aprendeu a fazer análises laboratoriais nos pequenos centros de saúde. Aprendeu também a preparar as seringas de injeções, durante a epidemia de cólera, em 1977.
Imaginem a expressão do doutor Alfonso Fossà quando, ao voltar a Uvira, o reencontrou. Burale, agora, é chefe dos enfermeiros no hospital local, tem 50 anos e dez filhos. Os dois não se viam há 25 anos. “Tive uma vida muito dura, doutor. Durante a guerra, precisamos fugir para a Tanzânia”. Está se referindo à Segunda Guerra do Congo, que matou cinco milhões de pessoas entre 1998 e 2008. “Minha família se dividiu para aumentar a probabilidade de sobrevivência. Hoje estou feliz, porque estamos todos bem e salvos”. Faz uma pausa. Levanta os olhos inchados de comoção e acrescenta: “Depois, queria lhe dizer que em todos esses anos fui fiel à minha mulher. Pensava no senhor”.
A casa de Kiringye foi a primeira casa dos Memores Domini fora da Itália. A obra de apoio ao desenvolvimento naquele vilarejo foi criada no início das atividades da Fundação AVSI. Com Alfonso Fossà, moravam Ezio Castelli, Giovanna Tagliabue, Letizia Vaccari e Vincenzo Bonetti. A experiência durou até 1993. Depois, voltaram para a Itália. Foram doze anos intensos. Às vezes, cheios de aventura. Criaram cooperativas rurais para a produção e comércio de arroz e de óleo vegetal. Na cidade não havia energia elétrica. Então, com a ajuda de amigos italianos, trouxeram uma central elétrica completa, que tinha sido desativada num vale da região de Trento. Um feito épico.
Depois de todo aquele tempo, era de se esperar o nascimento de uma próspera comunidade de CL. Mas, não. Nenhuma comunidade nasceu. “Tentamos organizar alguns encontros de Escola de Comunidade, mas não foi em frente”, explica Alfonso: “Porém, não era aquela a nossa preocupação. Estávamos ali para compartilhar a vida com aquelas pessoas. Vivíamos e trabalhávamos com eles. Éramos bons paroquianos. Não sentíamos a necessidade de que nascesse a associação CL”. Alfonso é o único dos cinco que conseguiu voltar ao Congo, depois de retornar à Itália. Hoje, vê frutos de “plantas” que nem sabia que tinha semeado. Não só: sem que ninguém planejasse, este ano, pela primeira vez, um pequeno grupo de congoleses de Uvira – a 180 quilômetros de Kiringye – foi a Kampala para os Exercícios da Fraternidade de CL.
“Posso levar um colega?” . Fabio De Petri está em Uvira desde 2012 trabalhando para a AVSI, que voltou ao Congo depois da experiência pioneira de Kiringye. Ele trabalha em alguns projetos, entre eles a construção de uma estrada para um centro de saúde na floresta. Às vezes, precisa apresentar a organização aos parceiros congoleses. Assim, fala da forte tendência da ONG italiana em apoiar projetos educativos. E a quem lhe pergunta por que esse grande interesse, Fabio fala da paixão de Dom Giussani pelos jovens e de como nasceu CL. Prosper, um funcionário de cerca de 50 anos de uma ONG local, o escuta. É católico, mas um pouco desiludido. Diz a Fabio: “Não sabemos mais o que dizer aos nossos jovens para transmitir a fé a eles. Aquilo que você diz sobre Dom Giussani parece ser o que precisamos. Posso lhe apresentar um jovem amigo meu?”. Évariste, 27 anos, no início chega sozinho, depois com o amigo Jean Jacques e a namorada Maua. Querem saber melhor o que é CL. Fabio fala, depois propõe a leitura de um texto. O único que está em francês é o livreto dos Exercícios da Fraternidade de 2012. Évariste, que se formou em Filosofia em Bukavu, fica tocado por um trecho onde padre Carrón fala do niilismo e do panteísmo. “É a primeira vez que vejo alguém falar de filosofia nos levando a dizer que Deus existe... Também me impressionou o fato de que não separa a vida social da vida religiosa. Este foi o tema do meu Trabalho de Conclusão de Curso: dizia que não se pode viver sempre da fé, é preciso viver na religião da humanidade. Isto é, viver na religião de Auguste Comte, baseada sobre o relacionamento homem-homem. Estava convencido de que era possível viver sem Deus. Estava muito convicto disso, dizia isso aos professores e às pessoas que conhecia. Depois, comecei a pensar e a dizer que o homem não pode viver sem trabalho, sem poder, sem dinheiro. Mas, no fim, entendi que tudo, mesmo isso, vem de Deus. Lendo as palestras de Carrón, fiquei impressionado pelo fato de ser possível dizer de modo tão razoável que Jesus está vivo e continua agindo”.
Marie Jeanne, Aimé e Elisabeth, todas também de Uvira, se unem ao grupo. Elas foram convidadas para ouvir o testemunho de Alfonso. No fim do encontro, Marie Jeanne se aproxima do médico e lhe diz: “Sou filha de Juma, seu funcionário, lembra? Em todos esses anos, minha mãe sempre nos falou do senhor”. Alfonso se lembra do rosto daquele jovem inteligente. Ele e Giovanna deram aulas a ele em Kiringye. Percebeu que ele tinha capacidade para dirigir os centros de saúde e o enviou para substituir temporariamente um velho enfermeiro, em Lubarica. O velho o envenenou por inveja. Era muito eficiente e empreendedor. Juma deixou uma filha de dois anos: Marie Jeanne.
Encontram-se com Fabio uma vez por mês. Então, vem a proposta: ir a Kampala para os Exercícios da Fraternidade. “Nestes meses, minha preocupação principal foi a de viver Comunhão e Libertação”, conta Évariste: “Foi natural aceitar o convite de Fabio. Queria ver de perto do que se tratava. Quando chegamos em Kampala, participamos de uma missa com o Núncio. Depois, assistimos às palestras de Carrón. O tema era a fé e ele mesmo era um exemplo daquilo que falava. Fiquei impressionado com o exemplo de Zaqueu. E, também, com o que disse sobre o amor de Deus: nada pode nos separar do Seu amor. Este foi o tema que mais me tocou: tudo o que o homem pode fazer é por causa do amor de Deus. Ter isso presente, reforça a fé. Foi bonito viver o sentimento de fraternidade e amizade com as pessoas que conheci”.
“Tivemos um breve momento com Rose Busingye”, conta Fabio: “Ela se despediu dizendo-nos que hoje a África não precisa de pregadores, mas de testemunhas”. Testemunhas, hoje. Como o foram os jovens da casa de Kiringye trinta anos atrás.
Como uma mãe. Irmã Feza veste uma túnica azul, um pouco kitsch, com imagens marianas. Pertence às Irmãs de São José de Turim e trabalha na farmácia de um hospital que tem a colaboração da AVSI. Enquanto acompanha Alfonso no carro, conta que fundou um grupo que ela chama de “Famílias para a Acolhida”. Sem saber nada do que acontece na Itália com a associação homônima, Irmã Feza se deu conta do grande número de órfãos da guerra. Encontrava também famílias dispostas a cuidar das crianças, mas normalmente a disponibilidade ideal não era acompanhada pela econômica. Assim, pede à sua superiora permissão para comprar um hectare de terra para cultivar: os produtos do campo seriam para ajudar as famílias acolhedoras. Começou com três irmãos. Hoje, as crianças acolhidas são uma centena e as famílias envolvidas são cerca de sessenta. Irmã Feza, a certo ponto, diz a Alfonso: “Sabe por que faço isso? Quando era noviça, em 1979, fiz um curso de Educação Sexual ministrado por um médico italiano. Aquele médico disse que se nós, freiras, não aprendêssemos a amar as pessoas como uma mãe ama seus filhos, nos tornaríamos solteironas áridas. Nunca me esqueci dessas palavras. E hoje, faço o que faço porque quero amar como uma mãe. E, doutor Alfonso, talvez o senhor não se lembre, mas aquele médico italiano era o senhor”.
(Artigo publicado em Passos n.152, Outubro 2013)
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